Clímax #22: Não resisti: Planet of the Humans
Olá,
A semana que passou foi repleta de polêmicas. Se aqui no Brasil o grande tema foi a saída do ex-Ministro Sério Moro do governo, na bolha climática internacional foi o lançamento de um documentário que tomou a atenção de todos.
O filme em questão se chama Planet of the Humans, foi produzido (e promovido) pelo famoso e controverso documentarista Michael Moore, dirigido pelo auto-proclamado ambientalista Jeff Gibbs e lançado gratuitamente no Youtube no Dia da Terra.
Ele ainda não parece ter sido descoberto pelos brasileiros - o que faz todo sentindo com tudo o que está acontecendo por aqui - mas tenho certeza que em breve será e por isso achei importante alertar sobre seus problemas antes que chegue até vocês como uma grande verdade.
(Agora, se você me perguntar se o email de hoje é mais importante do que prestar atenção nas notícias sobre o coronavírus ou a situação política no país a minha reposta é um claro não. Se sua cota de notícias já está saturada, pode arquivar o email de hoje, mas se você curte uma polêmica, já viu alguém recomendar esse documentário ou bateu uma curiosidade, senta aí que o texto é longo. E eu prometo voltar em breve com notícias do Brasil.)
Em menos de uma semana o filme foi promovido amplamente por Moore - inclusive em programas de TV - lançado, assistido por mais de 2 milhões de pessoas, criticado por cientistas e ambientalistas, abraçado e defendido por negacionistas do clima e pela alt-right americana, retirado de um dos sites de distribuição pelas críticas a sua facticidade e depois recolocado devido às críticas que classificaram o ato como censura assim promovendo ainda mais o filme, e por fim, virou conteúdo de um exército de bots anti-ambientalismo no Twitter.
Mas afinal, do que se trata?
Planet of the Humans se propõe a apresentar “verdades duras” sobre o movimento climático e sua dita “obsessão” por energia renovável. O que ele faz é destruir a reputação da energia eólica, da energia solar, da biomassa e de alguns dos maiores líderes climáticos nos EUA, concluindo que todas - ou aquelas que o diretor já ouviu falar - soluções para a crise climática estão erradas mas sem apresentar nenhuma solução nova apenas que “os homens precisam se responsabilizar, enfrentar a ideia da morte (??) e entender que o crescimento econômico não é eterno” além de uma pitada de ecofascismo e superpopulação. No mínimo deprimente.
O primeiro grande problema do filme é que ele está velho, o que qualquer um pode notar até mesmo pela qualidade das imagens e as roupas das pessoas. Aparentemente o filme começou a se formar em 2010 ou 2012, e vemos nele cenas até mesmo de 2008, uma eternidade atrás em termos de avanço tecnológico. Os dados mencionados simplesmente estão desatualizados, quando não distorcidos. Isso inclui a eficiência, custo e durabilidade de painéis solares - ele sequer menciona que existe mais de um tipo de tecnologia para cumprir essa mesma função - e basicamente todos os números citados.
O diretor Jeff Gibbs também não fala com nenhum cientista especializado nessas tecnologias, na verdade ele praticamente não fala com nenhum cientista da área, seja climático, seja energético. Curiosamente, a maioria dos entrevistados são antropólogos ou escritores, não tiro o seu mérito, apenas não é o bastante. Também não se escuta nenhuma opinião divergente à do diretor. Quando quer mostrar que ouve, sim, o “outro lado”, Gibbs se dirige a manifestações climáticas e entrevista pessoas aleatórias que encontra, como se representassem o movimento ou como se suas respostas tivessem algum rigor cientifico.
Michael Moore, em um post no seu Instagram, diz que no filme eles mostram a esperança que eles tem nos jovens ativistas nos direcionando à salvação o planeta, mas eles esqueceram de falar ou sequer mostrar esses novos líderes. Talvez se tivessem falado com essa juventude ao invés de focar nos brancos de meia idade que foram os líderes climáticos pioneiros na luta, teriam vistos que mesmo eles já passam o bastão para uma nova geração que sabe que a luta climática precisa ser diversa, precisa ser inclusiva, precisa estar baseada em justiça climática e em mudança do sistema. No entanto, preferem a arrogância de acreditar que tudo isso é criação deles, segredos e descobertas nunca antes ditos.
Na newsletter Heated, Emily Atkin chama isso de “o ciclo dos caras climáticos de primeira viagem” (em tradução livre). A jornalista se recusou a assistir o filme e escrever uma crítica dele explicando que está cansada de ter que gastar seu tempo desmontando argumentos confusos de quem nunca passou muito tempo aprendendo e escrevendo sobre o clima e acordou um dia com a plena certeza de que daria o maior furo da história do tema.
Pois para quem alega trazer as verdades que ninguém quer dizer, o filme não traz nenhuma novidade. Os grandes momentos de “a-há!” são quando ele descobre coisas que todo mundo que tem um mínimo de interesse já sabe, por exemplo que painéis solares e turbinas eólicas não duram pra sempre. Será que ninguém está falando disso? (Evidências do contrário: 1, 2, 3, 4, 5, 6). Na sua jornada Gibbs ainda descobre que para se produzir esses equipamentos são necessários minérios, que esses modos de energia são intermitentes, que baterias serão necessárias, que tem gente lucrando com essas tecnologias, entre outros argumentos anti-renováveis de mais de uma década atrás.
Ao final de todas as descobertas o diretor conclui que energias renováveis não são melhores do que combustíveis fósseis e que, como diz um dos entrevistados: “Se usa mais combustíveis fósseis para produzir ‘energia renovável’ do que se beneficia dela. Seria melhor simplesmente usar o combustível fóssil ao invés de fingir”. Esquecendo de consultar algo chamado Avaliação de Ciclo de Vida, que justamente quantifica os impactos ambientais de um produto ou processo ao longo do seu ciclo de vida e que, obviamente, já foi feito para todos os tipo de atividade de produção de energia.
Se renováveis não são *a* solução (pois aparentemente é preciso que seja só uma) para a crise climática então o que é? Bom, Gibbs não parece saber e nem procurar. Mas por não oferecer respostas, a única solução que ele parece apontar é o controle populacional, já que em dado momento do filme, ainda que muito rápida e superficialmente ele apresenta argumentos de vários de seus entrevistados sobre a superpopulação humana no planeta.
Esse é provavelmente o detalhe mais perigoso do filme, e talvez por saber disso, o diretor tenha escolhido o tratar de forma tão breve. Para quem acredita que a superpopulação é o problema então qual seria a solução? Eu já falei um pouco sobre ecofascismo no Clímax #14 e mencionei a questão da superpopulação no Clímax #12, a verdade é que são muitos problemas envolvidos nessa história. Para começar a reflexão destaco o seguinte, a taxa de natalidade está caindo há anos na maioria dos países desenvolvidos, com boa parte deles já fazendo campanhas e tomando medidas políticas para tentar aumentá-la. A grande maioria - se não todos - os países com maior taxa de natalidade são também aqueles com menor emissão de gases de efeito estufa. Quem afinal eles querem que pare de ter filhos? Como eles pretendem fazer isso acontecer? Se for através da educação, emancipação e empoderamento da mulher, eu topo. Qualquer outra medida é inaceitável, autoritária, machista e, quase sempre, racista.
Seguindo o raciocínio do filme, deveríamos diminuir o número de crianças nascendo (espero que seja isso e não eliminar pessoas já vivas), continuar usando combustíveis fósseis (desistindo dos renováveis para sempre) e é claro, aceitar a nossa mortalidade (eu ainda estou tentando entender essa parte) e acabar com a civilização industrial de alguma forma não especificada.
Ok, ok, nem tudo no filme é péssimo. Alguns dos temas apresentados no documentário são sim relevantes, as críticas a biomassa são válidas, é importante suspeitarmos das intenções de grandes corporações, é preciso consumirmos menos, entre tantas outras coisas. Mas quase tudo já é debatido exaustivamente pelo movimento climático, e mesmo esses assuntos são apresentados de forma equivocada e superficial.
A questão dos materiais necessários para a transição completa da nossa eletricidade de combustíveis fósseis para renováveis, por exemplo, é algo pelo qual eu tenho muito interesse e muita dificuldade em achar informações a respeito. Eu assistiria um documentário inteiro sobre isso. Mas Gibbs foca apenas na sua descoberta pessoal de que turbinas, painéis e baterias demandam minerais raros e que a mineração é uma atividade prejudicial ao meio-ambiente. Nenhuma novidade para ninguém. Não sei do que ele achou que esse equipamento era feito, talvez de folhas de árvores caídas pelo vento.
Algumas das reais questões aí são: É possível tornarmos a mineração mais sustentável, tanto para o meio-ambiente quanto socialmente já que muitas vezes destroem comunidades e utilizam trabalho escravo? Qual será o papel da mineração do fundo do mar (falei disso no Clímax #9)? Estão contando com isso? Que novos problemas isso pode trazer? Se formos efetivamente trocar toda a nossa rede elétrica por energia renovável e todos os nossos meios de transporte por versões elétricas movidas à bateria sequer existem minerais suficientes na reserva mundial ainda que estivéssemos dispostos a explorá-los até o fim?
Para a ultima pergunta, por exemplo, eu - do alto da minha ignorância em mineração - acredito que a resposta é não e existem alguns cálculos perdidos por aí que indicam o mesmo. Já tentei perguntá-la em um painel de especialistas que deu respostas vagas e rapidamente fugiu do tema. Talvez se Gibbs e Moore tivessem investido em um documentário sobre isso teriam encontrado algum momento “a-há” verdadeiro.
Por enquanto é isso que temos.
Não vou dizer para você não assistir, às vezes é importante saber o que andam dizendo por aí, mas já aviso que além de tudo aqui mencionado, o narrador tem uma das vozes mais entediantes que eu já ouvi.
Leitura extra
Planet of the Humans Comes This Close to Actually Getting the Real Problem, Then Goes Full Ecofascism (Brian Kahn, Earther)
Skepticism Is Healthy, but Planet of the Humans Is Toxic - A Critical Review (Films for Action - o distribuidor que retirou e depois retornou o filme ao seu acervo)
Planet of the humans: A reheated mess of lazy, old myths (Ketan Joshi)
New Michael Moore film charges enviro leaders have ‘lost their way’ and ‘sold out to corporate interests’ (Eric Wesoff, PV Magazine)
Planet of the Humans review – contrarian eco-doc from the Michael Moore stable (Peter Bradshaw, The Guardian - deu 4 de 5 estrelas ao filme)
The wheel of first-time climate dudes (Emily Atkins, Heated)
Eu até ia entrar em outros temas mas ficou longo pra caramba.
Não preciso mais dar explicações sobre os dias em que os emails estão chegando, né? Já ficou estabelecido que durante a quarentena dias, horas, meses perderam o sentido e vocês não se importam, certo?
Pois nos vemos então em algum momento do futuro. Até lá!
Se alguém te mandar assistir esse filme, compartilhe o Clímax com a pessoa.
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