Clímax #12: Filhos no apocalipse
Olá,
Eu sei que muita coisa aconteceu durante a semana, inclusive aqui no Brasil com as chuvas em Minas Gerais, mas hoje temos mais um Clímax especial e na semana que vem voltamos com as notícias das duas semanas.
O tema de hoje é um dos que mais me atormenta.
Este não é um texto sobre querer ou não querer ter filhos, essa é uma decisão muito pessoal e para qual a resposta, não importa qual ela seja, é sempre correta desde que seja sua. O debate que eu proponho é quase um passo seguinte a escolha (ou aceitação) do querer, é o dilema entre ser certo, justo, responsável ou não ir adiante e satisfazer tal desejo.
Com a perspectiva de futuro que temos, sustentada por pesquisas, modelos científicos e experiências passadas, é uma boa ideia colocar uma nova pessoa no mundo?
É claro que não trago respostas, trago apenas ideias a serem consideradas, aquelas que ainda martelam na minha cabeça mesmo depois de anos de conversas internas sobre o assunto. São mais perguntas do que respostas. Que fique bem claro que nem eu nem ninguém tem o direito de te dizer se você deve ou não deve, pode ou não pode ter ou querer ter filhos.
E mais do que nunca eu gostaria de ouvir de vocês também. Lembro que sempre que quiserem trocar uma ideia é só responder o e-mail, não fique envergonhado se não nos conhecemos, eu ficarei feliz em conversar e nunca usarei suas informações ou o conteúdo do seu comentário a não ser que você assim sugira.
Conhece alguém passando por esse questionamento também? Compartilhe:
Obs.: O texto abaixo foi reproduzido na revista digital Futuro Possível em fevereiro de 2020.
Visão de uma infância pós-apocalíptica. Uma criança fugindo dos fogos na Austrália em um barco com sua família. Foto: Allison Marion
Em 2050, as crianças que nascerem nos próximos meses completarão 30 anos. Será que eles estarão se perguntando a mesma coisa que eu estou agora, se ainda é possível escolher ter filhos?
Com todas as previsões e todos os modelos científicos que nos apresentam de como a vida será nas próximas décadas se não fizermos nada, o que me vem a mente quando tento imaginar como seria o futuro de um possível filho é o que não podemos prever, o fator humano.
Mais do que os efeitos do clima o que me preocupa somos nós mesmos. Como trataremos uns aos outros? Quais serão as consequências psicológicas das mudanças climáticas nas próximas gerações?
Hoje mesmo já vemos adolescentes e crianças super envolvidos na luta climática, pode até parecer muito bonito e inspirador mas na verdade é difícil e sofrido. Esse papel não deveria ser deles. Eles estão apavorados e com razão. Se nada for feito, se nada mudar, ainda haverá infância?
Com isso em mente não é estranho que eu me pergunte se faz sentido colocar alguém no mundo agora, e eu sei que não estou sozinha, cada vez mais a crise climática faz parte desse processo de decisão com muita gente optando pelo não como resposta.
Existem dois aspectos principais que estruturam esse questionamento, um é o impacto de uma nova criança no planeta, o outro é o impacto do planeta - em sua nova situação climática - na criança.
O primeiro há muito tempo não faz sentido para mim. A gente bate tanto na tecla de não culpabilizar o indivíduo e sim o sistema e eu vou culpar um bebê que nem nasceu? Te trago alguns argumentos para repensarmos essa perspectiva:
Mesmo que a população não cresça em uma única pessoa, se continuarmos a viver como vivemos estaremos ferrados. Nós precisamos que o sistema mude, precisamos alcançar emissões zero e quando isso acontecer, a pegada de carbono de todo mundo, incluindo do seu rebento, será também zero.
Ah mas ainda não vivemos nesse sistema e pelo menos por um período de sua vida a criança vai, sim, emitir. Um relatório de 2015 da Oxfam revelou que os 10% mais ricos da população mundial é responsável por 49% das emissões do planeta, enquanto os 50% mais pobre é responsável por apenas 10%. Ou seja, a grande maioria das pessoas tem pouca responsabilidade nas emissões. Se você está considerando a crise climática na sua decisão de ter filhos é sinal de que você realmente se importa com o assunto, o que significa que você é capaz de passar essa preocupação para o seu filho também. Juntos será mais fácil mudar hábitos e padrões de consumo, uma pesquisa do ano passado mostra que a opinião das crianças tem forte influência na relação dos pais com as mudanças climáticas.
Mas o mais importante é o seguinte. A taxa de fecundidade mundial só vem caindo desde os anos 1960 e hoje na maioria dos países já está abaixo de 2,1 filhos por mulher, o que significa que não é considerada suficiente para manter estável a população de seus países. Mesmo aqui no Brasil a taxa de fecundidade já é de apenas 1,7 filhos por mulher. Ou seja, o problema não sou eu e você, que podemos ter esse tipo de discussão e decidir se teremos filhos ou não. E o problema definitivamente não é termos liberdade demais, sugerindo que ações de controle populacional seriam a solução. O problema é justamente a falta de escolha e por isso direitos reprodutivos são parte importante da luta por justiça climática. É no crescimento populacional decorrente da falta de autonomia da mulher, da falta de educação, dos casamentos infantis, dos casamentos forçados, da falta de acesso à contraceptivos incluindo abortos (mas obviamente excluindo a promoção da abstinência), que devemos focar, e não na decisão expontânea e individual de se ter um ou dois filhos.
[…] o Brasil ainda apresenta um percentual muito elevado de gestações não planejadas – mais de 55%, segundo uma pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz que ouviu 24 mil mulheres entre 2011 e 2012. (Nexo)
O direito à reprodução só existe se existir também o direito à não reproduzir-se. O fato de estarmos tendo essa conversa é sinal disso. A preocupação com a superpopulação já começa a nos roubar da liberdade de nos reproduzir. E essa liberdade é um direito básico e natural, que não deveria nunca nos ser tirado.
Pois bem, eliminado esse primeiro elemento, fica o segundo e ele é um pouco mais complexo. Como aceitar que a criança que eu colocar no mundo crescerá em um planeta quase irreconhecível e aterrorizante como o que é descrito nos relatórios científicos?
Para Sama é o retrato da maternidade em meio ao caos na forma de um diário de uma mãe para sua filha nascida em meio a guerra na Síria e está concorrendo ao Oscar de melhor documentário.
Mesmo com todas as tragédias que aconteceram na história da existência do homo sapiens neste planeta, nunca houve um período em que achamos necessário pararmos de nos multiplicar, o que permitiu que eu você estejamos vivos e tendo essa conversa. Mas por alguma razão eu tendo a acreditar que as ameaças atuais são diferentes de tudo o que já experimentamos antes, e o primeiro passo para enfrentar esse dilema seria definir o porquê.
Eu sempre foquei muito na questão da escala. A escala da crise climática é realmente gigantesca, acredito mesmo que nunca houve uma ameaça única que impactou toda a população mundial. Mas será que a escala é mesmo tão importante ou será que se tornou porque ela finalmente me inclui?
A verdade é que eu sempre olhei para o problema através de uma lente grossa de privilégios.
O que importa na crise climática é o tamanho da violência dos seus impactos, e essa violência não é sem precedentes, pelo contrário, esse nível de violência que chega a ameaçar a existência se repetiu incontáveis vezes na nossa história.
Colonialismo, escravidão, racismo, genocídio. Se agora é errado colocar alguém no mundo, quando foi certo? E para quem?
O apocalipse de uns é apenas um dia normal para outros: Ágatha, 8 anos; Kauã, 11 anos; Jenifer, 11 anos; Kauê, 12 anos; Ketellen, 5 anos; Kauan, 12 anos. Crianças mortas por bala “perdida” em comunidades do Rio de Janeiro no ano passado, no total 28 foram atingidas. Neste ano (ou seja, nos últimos 30 dias) 4 crianças já foram atingidas. Anna Carolina Neves, 8 anos, morreu no sofá de casa e Arthur, 5 anos, foi atingido na cabeça enquanto jogava futebol.
Nunca houve um tempo que não houvesse pelo menos um povo em perigo. Estavam errados todos os que tiveram filhos dentro desses contextos? Alguém acha que teria sido melhor para alguma pessoa se ela nem tivesse nascido? A solução para as violências do futuro definitivamente não é eliminar todas as possíveis vítimas por precaução.
A verdade é que ninguém nunca pôde assegurar o futuro de seus decendentes. Ter filhos é sempre um risco, criar vida é sempre também criar morte.
Se eu não tiver filhos por uma questão puramente ética, por considerar errado tê-los, o que estou dizendo exatamente? De duas uma, ou eu estou sugerindo uma auto-extinção planejada da nossa espécie ou me coloco em um patamar moral acima das outras pessoas, dizendo que a ética vale apenas para mim:“Eu até quero que a espécie continue mas você que o faça, você que lute.”
Eu me recuso a defender a extinção da espécie humana apesar de todos os nossos erros. Eu não defenderia a extinção de espécie alguma, por que defenderia a nossa? Sabemos que por menor ou mais insignificante que pareça, toda espécie tem papel a cumprir no ecossistema do planeta e não é possível que nós não tenhamos também.
A nossa espécie se colocou nessa furada climática sozinha, e junto colocou todas as outras. A crise é fruto do que nos é mais único, nossa capacidade de usar tudo o que há ao nosso redor para criar coisas, criar novas necessidades e nos afastar o máximo possível de outras espécies. Se as causas da catástrofe são puramente humanas é justamente com essas particularidades que precisamos lidar, são essas criações e decisões, esses hábitos e essas novas necessidades que precisam ser reavaliadas. Mas reproduzir-se não se encaixa nessa categoria, a reprodução não é unicamente humana. Pelo contrário, se há algo que temos em comum com todos os organismos do planeta é o impulso da continuidade. E sendo assim, como pode ser errado?
Se buscarmos um propósito na existência do planeta, me parece que tudo nos leva a vida. Tudo vive e morre para criar vida ou para tornar a vida possível. De forma alguma estou dizendo que nosso propósito como indivíduos é ter filhos, muito menos que todos devemos tê-los, mas acredito na possibilidade do nosso propósito ser o de garantir a possibilidade da continuidade da vida no seu sentido mais amplo. Claramente estamos falhando.
Nos vermos como parte da natureza e não como donos dela e nos entendermos como iguais frente às outras espécies é essencial para lidarmos com a crise climática. Precisamos nos conectar e não apenas com a natureza de fora mas também com a nossa própria natureza. Para alguns, é dessa busca pela sua identidade mais primordial que nasce o desejo de ter filhos, de dividir essa experiência com todos os nossos ancestrais que também a viveram. Como mulher há ainda a vivência da gravidez, que permite uma conexão com o corpo sem igual, uma possibilidade de entendimento da força e do potencial da biologia humana. Às vezes acho que é por isso que temos visto um renascimento tão forte dos movimentos por partos mais naturais, vejo uma busca por essa conexão com a essência de quem somos.
A maternidade/paternidade é sempre uma aposta no escuro. É uma lição em não ter controle. Você pode decidir que quer engravidar, planejar o parto, idealizar a criança mas não pode controlar quando e se a gravidez vai de fato acontecer, ou como se sentirá durante aqueles meses, como ou quando (às vezes nem onde) o parto será, muito menos pode querer moldar a personalidade e as características da criança que virá. A crise climática não é tão diferente, podemos até criar modelos que preveem como quantidades específicas de CO2 afetarão o planeta, ou como certas temperaturas influenciarão cada aspecto da nossa vida. Mas o que ninguém pode prever é como vamos agir como sociedade, nem quando ou em que intensidade.
No final das contas, a impressão que eu tenho é que para quem descobriu que quer ter filhos a vontade nunca vai embora. O mesmo vale para essa grande dúvida que, uma vez que levantada, eu não consigo ver desaparecendo mesmo depois da decisão tomada. No fim cabe a cada um saber com o que pode viver melhor, com a vontade não realizada ou o medo da culpa.
Leitura extra (em inglês):
If I have no hope for the planet, why am I so determined to have this baby? (Gemma Carey, The Guardian)
[…]entre escolher a tristeza de viver uma existência sem filhos porque eu não acredito que o planeta pode sobreviver conosco, e a tristeza de ter um filho cujo futuro pode ser limitado - eu fico com a segunda opção. Quando eu faço um balanço entre as duas opções e analiso qual a mais pesada, eu decido vez após outra que a segunda é a tristeza que eu consigo carregar mais facilmente.
Sons of the Pre-Apocalypse (Brian Merchant, Vice)
The Concession to Climate Change I Will Not Make ( Jedediah Britton-Purdy, The Atlantic)
A única alternativa a desistir da humanidade é termos filhos que não poderemos proteger como gostaríamos, ou como alguns de nós crescemos imaginando ser possível.
Climate change is a reproductive-justice issue (Sady Doyle, Dame Magazine)
Chris Pachkham: 7.7 billion people and counting - A review (Dr. Alexandra Jellicoe, Monkey Wrench) - Uma explicação: Esse texto é um crítica à um documentário que passou na BBC recentemente defendendo a ideia de que a superpopulação é uma das maiores causas da crise climática. A Dra. Jellicoe nos mostra os perigos de se promover o controle populacional e desmistifica os argumentos do filme com dados. Vale a pena a leitura.
I want to be a parent, but how can I when things seem so awful? (Ask umbra, Grist)
To Have or Not to Have Children in the Age of Climate Change (Katie O’Reilly, Sierra)
O texto de Kaitlyn Greenidge para o projeto #ClimateVisionaries
“O nosso povo sempre teve filhos mesmo quando o mundo estava acabando para nós” minha mãe me disse. “Se mulheres negras esperassem por um mundo onde tivéssemos esperança para ter filhos, nós nunca os teríamos.”
Mothering in the Age of Extinction (Drilled)
As Environmental Catastrophe Looms, Is it Ethical to Have Children? Two philosophers discuss the morality of family planning in the age of climate change. (Foreign Policy)
*Se vocês conhecerem algum texto em português me mandem.
Até semana que vem!
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