Olá,
Bem-vindes mais uma vez ao Clímax, uma newsletter sobre a crise climática escrita na primeira pessoa. Por vezes uma curadoria de notícias, por vezes reflexões e discussões, sempre com um toque pessoal e uma pitada de eco-ansiedade.
Hoje temos mais uma edição temática e desta vez ela será dividida em duas partes, a primeira você recebe hoje e a segunda na semana que vem. Leia a introdução para entender quais assuntos serão abordados em cada edição.
Pera aí, você recebeu este e-mail de alguém e não é assinante ainda? Resolva agora mesmo a situação:
Ah, se já é assinante, você lembra que eu estou tentando começar uma coluna de conselhos climáticos? Pois a proposta ainda está de pé, só falta a colaboração de vocês.
Coluna de conselhos climáticos? Sim. Inspirada pela Ask Umbra, escrita pela Eve Andrews para o Grist. Você tem alguma dúvida ou dilema sobre a vida na crise climática? Não sabe se faz um casamento sustentável ou compra uma bicicleta elétrica? Quer alguma dica específica sobre que hábitos mudar? Ouviu falar de alguma solução milagrosa para a crise e quer saber se é verdade? Tem algum medo que não sabe se faz sentido ou não? Está sofrendo e quer dividir? Deixe sua pergunta anônima AQUI e de tempos em tempos escolherei algumas para responder. Qualquer pergunta é válida!
Nossa forma de morar, ou seja, como e onde vivemos, como construimos, compramos e vendemos nossas casas, e provavelmente o próprio sonho da casa própria, passará por transformações imensas nas próximas décadas. Se não for por opção, através de ações planejadas para diminuir as emissões das edificações e para adaptar nossos imóveis às novas condições climáticas, a mudança virá pela força da natureza através de eventos climáticos cada vez mais destruidores.
Hoje, a construção é responsável por 39% das emissões de carbono do mundo, 11% durante a construção e produção de materiais, e 28% no uso dessas edificações (aquecimento, resfriamento e iluminação). A produção de cimento sozinha representa 8% das emissões de CO2.
Para cortar nossas emissões e controlar o aumento de temperatura, esses números precisam mudar. Porém, eletrificar a economia global e fazer a transição de energia fóssil para energia renovável requer um grande investimento justamente na construção de nova infraestrutura, e o uso de muito concreto, cujo ingrediente principal é o cimento. Se focarmos nas residências, a maioria das casas e prédios construídos até o momento estão longe de ser eficientes. Já novas construções, embora possam ser projetadas usando tecnologias mais sustentáveis, com custos às vezes mais baixos do que o da adaptação de obras antigas, dependem da extração de mais materiais. Esses materiais muitas vezes são problemáticos. Para o isolamento térmico, por exemplo, costuma-se usar ingredientes derivados do petróleo. Além disso, demolimos e abandonamos edificações prontas ou semi-construídas sem dó.
Ao mesmo tempo, a crise da falta de moradia é um problema mundial que se agravou com a pandemia. No Brasil, uma pesquisa publicada pelo Ipea com base em dados de 2015 projetou que havia pouco mais de 100 mil pessoas vivendo nas ruas do país, e o urbanista Edésio Fernandes calcula que nosso país tem, pelo menos, 6,9 milhões de famílias sem casa para morar.
Ter um lar é a base sobre a qual construímos nossa estabilidade, é o que nos dá segurança, privacidade e pertencimento à uma comunidade. Aqueles que não tem onde morar ficam mais vulneráveis à doenças, à poluição e aos eventos meteorológicos extremos exacerbados pela crise climática: calor, frio, chuvas. Grandes ameaças à saúde. Não basta apenas ter um teto sobre a cabeça, a falta de uma moradia digna e de saneamento básico também traz riscos à saúde. De acordo com o Censo de 2010, na época, quase metade das moradias brasileiras não eram consideradas adequadas do ponto de vista sanitário.
Para piorar, a crise climática promete desabrigar ainda mais pessoas, tornando mais residências inabitáveis ou inadequadas já que um dos seus grandes efeitos é a maior frequência e intensidade de desastres ambientais como furacões, incêndios e enchentes, que chegam a destruir comunidades inteiras. Se continuarmos na trajetória atual, a elevação do nível do mar avançará sobre algumas das cidades mais populosas e com alguns dos imóveis mais caros do planeta. Milhões de pessoas já se deslocam por causa desses eventos e os números só vão aumentar.
Resolver todos esses problemas ao mesmo tempo, garantindo o direito à moradia a todos, satisfazendo as novas necessidades de um clima mais extremo, e diminuindo nossas emissões de gases de efeito estufa, claramente não é uma tarefa fácil. O primeiro passo é entendermos todas essas conexões e a newsletter de hoje é um exercício nesse sentido, uma tentativa de refletir sobre os pontos em que a crise climática e o morar convergem.
O tema será dividido em duas edições. A de hoje aborda questões mais sistemáticas, a segunda parte será enviada na semana que vem e tratará de questões um pouco mais individuais e materiais, como construção de baixo carbono, adaptação de edificações, a nossa relação com o lar e a estética como consumo.
Racismo climático, ilhas de calor e zonas de sacrifício
A sua renda e sua cor de pele podem definir à quanto de calor você está exposto.
A temperatura de um local não depende apenas do que está acontecendo na atmosfera, mas também do que há ao seu redor. Zonas rurais costumam ser mais frescas do que zonas urbanas, e dentro de uma cidade a diferença entre bairros pode ser de vários graus. Esses locais mais quentes em relação a seus arredores são ilhas de calor. Elas se criam porque os materiais que moldam nossas cidades, como o concreto e o asfalto, absorvem e irradiam o calor; os prédios altos criam grandes superfícies que refletem o calor para as ruas e diminuem a circulação do ar. A poluição e a alta concentração de carros e equipamento no geral também contribuem, e principalmente a falta de vegetação, que reduz o impacto dos raios solares, aumenta a umidade e proporciona sombra.
De uma forma bem simples, quanto mais verde e menos cinza, menos quente será.
Pense na sua cidade por um momento. Onde se localizam os parques? Quais são os bairros mais arborizados? Por quais regiões cruzam as rodovias e vias com maior fluxo de veículos? Agora pense quem mora nesses lugares.
Nos Estados Unidos, vários estudos já concluíram que bairros de baixa renda e de população predominantemente não-branca tendem a ser mais quentes nas grandes cidades. No Canadá, pesquisadores observaram que esses bairros têm menos árvores. São esses também os bairros onde os residentes tem menos condições de pagar para manter ar-condicionados ligados, exacerbando o problema principalmente durante ondas de calor que — você adivinhou — já são mais frequentes devido à crise climática.
Não precisa ser assim:
O exemplo do bairro Vila Nova Esperança, em São Paulo.
Os moradores que lutam pela criação de mais parques também na maior cidade do país.
Para que possamos nos beneficiar dos confortos da modernidade como eletricidade, tecnologia e todos produtos que consumimos, em algum lugar precisam haver minas, usinas, fábricas, aterros sanitários e campos cheios de agrotóxicos, poluindo os seus arredores. Não deixamos que essas estruturas se instalem perto de nossas casas ou dos lugares que costumamos frequentar, mas os aceitamos longe de nossos olhos, perto do “outro". Essas são zonas de sacrifício, zonas onde a degradação é permitida, onde encontramos poluição no solo, na água, no ar, ou mesmo poluição sonora, que afetam a saúde daqueles que vivem por perto. E você já sabe quem é que vive por perto, não é?
Esse é um dos motivos pelos quais falamos em justiça climática. Precisamos nos certificar de que a transição para uma economia de baixo carbono não criará novas zonas de sacrifício e ao mesmo tempo, precisamos aproveitar a oportunidade para consertar os erros do passado, garantindo que os efeitos da crise não sejam sentidos desproporcionalmente por grupos minorizados. Por isso, não existe solução para o problema da moradia que não passe pela questão climática.
Novos projetos de moradia popular precisam ser construídos seguindo os últimos padrões de eficiência e resiliência, pensando no clima em longo prazo. Não podemos pensar só na moradia em si, mas também no seu entorno, com a criação de espaços públicos e verdes. É preciso ainda que, além de criarmos mecanismos de incentivo fiscal e financiamento para que aqueles podem pagar consigam adaptar suas casas, tenhamos também formas de modernizar as casas daqueles que não tem as mesmas condições.
Mercado imobiliário e seguros
Se tantos lugares se tornarão inabitáveis ou serão atingidos ano após ano por eventos meteorológicos destrutivos, o que vai acontecer com o mercado imobiliário?
Digamos que você tenha um apartamento na beira da praia, pode ser no Rio de Janeiro, por exemplo. Você pagou mais caro por ele para ter o previlégio de ver o mar todos os dias. A compra seria um investimento, uma garantia para o futuro, um teto sobre a sua cabeça mesmo em tempos difíceis. Por anos e anos você viu o seu imóvel valorizar, porém, em algum momento, o mercado começa a notar os riscos associados ao local e tanto a demanda quanto o preço cairão. Provavelmente será um processo lento e talvez já esteja em curso.
Isso já é realidade na Flórida, por exemplo, de acordo com uma pesquisa recente que sugere que o processo tenha começado há uma década. Nesse período, em uma cidade vizinha a Miami, as vendas caíram pela metade e os preços por volta de 8%.
Esses imóveis se tornam uma batata quente na mão de seus proprietários. Com os preços caindo e os riscos crescendo, vendê-los significa passar a batata adiante para que queime a mão de outro, alguém que, ou não está ciente dos riscos, ou não tem opção melhor. Enquanto isso, construtoras seguem construindo grandes empreendimentos em zonas de risco, inclusive imóveis de luxo, custando fortunas. Mas seguimos não divulgando esses riscos de forma ampla e transparente, para que todos tenham acesso. É uma bolha imobiliária prestes a explodir.
Já nas regiões mais seguras os preços podem começar a aumentar exponencialmente. Duas coisas podem acontecer, inclusive simultaneamente, a mais óbvia é os mais ricos se estabelecendo nos locais mais seguros, elevando seus preços e deixando os mais pobres nas áreas mais vulneráveis, o que já vemos em muitos lugares. Mas também pode acontecer algo que alguns chamam de gentrificação climática, no qual os mais ricos aproveitarão os valores baixos das áreas mais vulneráveis por terem condições financeiras para arcar com os custos de adaptação e mesmo reconstrução, se necessário, deixando os mais pobres sem nenhuma opção. Se não te parece possível, lembre das celebridades que contrataram bombeiros particulares para salvarem suas casas enquanto as de seus vizinhos queimavam na Califórnia.
Se como indivíduos podemos não estar tão cientes dos riscos ao nosso redor, pode ter certeza de que os bancos e as seguradoras estão cada vez mais em alerta. Em áreas mais vulneráveis não será mais possível conseguir financiamento, afinal, como financiar em 20 ou 30 anos a compra um imóvel que talvez não esteja mais lá ou não seja mais financeiramente sustentável no final desse período? Já os seguros residenciais cobrindo desastres como ciclones, granizo ou enchentes custarão cada vez mais caro até não serem mais oferecidos em áreas onde esses eventos serão mais frequentes. Tudo isso contribuirá para desvalorizar ainda mais esses imóveis.
Embora os mais ricos tenham mais propriedades e essas tenham valores mais altos, fazendo com que eles possam perder muito dinheiro, seu patrimônio é mais diversificado e conta com investimentos financeiros e mesmo em outros bens materiais como jóias e obras de arte. Quem realmente perde mais com esse fenômeno são os proprietários de renda mais baixa e os idosos, para quem o imóvel que possuem tende a representar uma parcela muito maior de seu patrimônio.
Realocação ou reassentamento planificado
Quando fica claro que manter imóveis em determinado local está se tornando insustentável, uma solução que aparece é a realocação planificada, ou seja, o deslocamento voluntário de pessoas, comunidades e, às vezes, até mesmo de edificações, de um lugar em risco para um lugar mais seguro com auxílio governamental ou de alguma organização. Pesquisadores de Stanford estimaram que, nas últimas três décadas, 1,3 milhões de pessoas se deslocaram dessa forma.
Isso pode ser feito através de programas de aquisição de imóveis pelo governo, o que normalmente acontece após algum desastre ambiental quando, ao invés de reconstruir o local, o que incluiria estradas e infraestrutura, o governo oferece a possibilidade da venda dos imóveis pelo que valiam antes do acontecido. Esses programas tem como princípio serem voluntários, nunca forçados, porém, na maior parte dos casos, é preciso que todas as casas de uma área aceitem a proposta para que se torne realidade. O objetivo do pagamento por esses imóveis é permitir que as pessoas tenham condições de encontrar um novo lar sozinhas, o destino final não faz parte do planejamento.
Outra possibilidade é o reassentamento de comunidades inteiras quando existem fortes laços entre o grupo. Nesse caso, a iniciativa de partir costuma vir dos próprios moradores que então buscam apoio governamental para a concretização, e o destino é a parte principal do planejamento, pois é preciso garantir que os laços não se quebrem. No Brasil, isso aconteceu com a comunidade Enseada da Baleia na Ilha do Cardoso, como é retratado no documentário O amanhã é hoje. Outro exemplo é a comunidade Newtok, no Alaska, que passou mais de 20 anos buscando apoio para se realocar, ou a comunidade da Isle de Jean Charles na Louisiana, de quem já falei aqui no Clímax.
Alagamento é o principal risco que tem incitado realocações planificadas. Seja a elevação do nível do mar, ou o aumento de precipitação transbordando rios com mais frequência. Porém, o derretimento do permafrost já assusta comunidades do norte do Canadá, Alaska e Groenlândia, e os moradores de lugares como a Califórnia e a Austrália, também já se questionam se é chegada a hora de partir em virtude dos fogos que se repetem ano após ano.
É claro que essa não é uma solução fácil. Abandonar o seu lar nunca é uma decisão fácil. Existem também outros problemas. Como se define quais riscos são grandes demais para se continuar vivendo no local? Ou quando é hora de partir? Costuma-se calcular se o custo de reconstruções frequentes é maior ou menor do que o custo da aquisição dos imóveis, o que acaba em decisões desiguais. Em áreas mais pobres, com imóveis mais baratos, opta-se pela realocação, enquanto em áreas ricas, como as áreas próximas a água em Nova York ou Miami, prefere-se o custo de adaptação, como a construção de muros para segurar a água.
Os ricos mantém suas propriedades, os pobres precisam recomeçar suas vidas em um novo lugar. Mas que lugar? Este é outro problema. Para onde serão realocadas as comunidades, e para onde migrarão as famílias que venderam suas casas para o governo? Onde conseguirão comprar novos imóveis? Quem estará preparado para recebê-los? Como garantir que não acabarão em outras zonas de risco?
Depois da partida, os locais normalmente devem ser “devolvidos a natureza”, destrói-se as edificações e se deixa que a natureza tome conta, criando uma nova barreira natural para impedir que a água ou o fogo avance ainda mais. Mas como garantir que novas comunidades não se estabelecerão no local? É preciso que existam melhores opções de moradia acessíveis à todos.
Por outro lado, se as realocações não são planejadas, elas podem ser espontâneas, criando outros problemas. Após o furacão Katrina, várias pessoas decidiram sair de Nova Orleans e muitos deles simplesmente abandonaram suas casas danificadas por não poderem repará-las nem vendê-las. Isso se torna um problema para quem precisa ficar e agora tem ao seu redor ruínas que só desvalorizam ainda mais a área, tornando ainda mais difícil que um dia possam partir. Além disso, os impostos da região caem por ter caído a população, mas a infraestrutura ainda precisa ser recuperada e mantida para os poucos moradores que restam.
O panorama não é bonito, não é mesmo? É importante pararmos de jogar esses problemas para baixo do tapete e começarmos a pensar em soluções. As mudanças necessárias para alcançarmos os objetivos do Acordo de Paris podem ser uma oportunidade para resolvermos outros problemas estruturais, como o da moradia. Ou podemos não fazer nada e ver os problemas já existentes se multiplicarem.
Na semana que vem a gente fala de questões mais práticas para pensar como criar e viver em estruturas de baixo carbono.
Até mais!
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