Clímax #11: Um dilema, uma nova dor e o ciclone brasileiro
Olá,
Você já deve ter notado - e é verdade que eu já comentei algumas vezes - que nenhum clímax é igual ao outro. Hoje trago menos notícias e mais indagação. Então senta que lá vem textão.
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Chegou aqui pela primeira vez?
Qual a hora certa de partir?
Na segunda-feira, o comitê de direitos humanos da ONU julgou ilegal que governos deportem pessoas cujas vidas estejam sendo ameaçadas pelas mudanças climáticas em seus países de origem. Eles consideram que os efeitos das mudanças climáticas podem ferir os direitos humanos básicos - que devem ser garantidos pelas nações a seus cidadãos - e portanto essas pessoas podem buscar o status de refugiados em outros lugares. A decisão deve ser usada como base em futuras batalhas legais de refugiados climáticos e serve como um aviso para os países do mundo de que essa responsabilidade é de todos.
O julgamento ocorreu a pedido de Ioane Teitiota após seu status de refugiado ter sido negado pelo governo da Nova Zelândia culminando na sua deportação em 2015. Ioane é nativo da República do Kiribati, um conjunto de 33 ilhas que já sofre com o aumento do nível do mar e com a falta de água doce para consumo e agricultura.
Apesar da boa notícia para o futuro, por agora a ONU concordou com a decisão da Nova Zelândia ao concluir que no presente momento não há risco suficiente para a vida de Ioane pois ainda há tempo para que o seu governo tome ações para mitigar os problemas.
Para além da dúvida de quando a população do Kiribati se tornará elegível para o status de refugiado, ou de quem é capacitado para decidir qual quanto risco é o bastante, ficamos com uma questão ainda mais profunda: Qual, afinal, é o momento certo para se abandonar um lar sem futuro?
Os fogos que ainda queimam a Austrália já foram responsáveis pela destruição de quase 3 mil casas e seus donos precisarão se perguntar se vale a pena reconstruí-las ou se o risco de perdê-las novamente é grande demais.
Incêndios florestais sempre aconteceram no país e algumas áreas sempre estiveram mais vulneráveis ao fogo. Talvez algumas das casas perdidas agora tenham sido construídas sobre as cinzas de construções que se perderam em incêndios do passado. A diferença é que o aumento da temperatura global tornou esses incêndios mais frequentes e mais intensos, e quanto mais aumentar, piores eles ficarão.
Se você soubesse que a cada seis anos você teria que evacuar a sua casa e poderia perdê-la por completo você ficaria ou tentaria se mudar para um lugar mais seguro? E se fossem dez? E se fossem dois?
Caso você decida partir, você vai precisar do dinheiro para comprar um novo lugar, mas como vender a propriedade para outra pessoa e lucrar sobre o futuro prejuízo do novo morador?
Já nos anos 60 o governo australiano criou programas de compra de propriedades em zonas de risco para possibilitar a relocação de seus residentes sem prejudicar outros, proibindo novas construções no local. Mas esses planos são sempre controversos e difíceis de se implementar.
Acontece que as pessoas tem muito apego por suas casas.
Nos Estados Unidos, o primeiro projeto de realocação de pessoas afetadas pelas mudanças climáticas começou a ser planejado em 2016. Ele contempla os residentes da Isle de Jean Charles, uma ilha no estado da Luisiana que já perdeu 98% de seu território para a água desde 1955. Boa parte da comunidade já se mudou por conta própria e o projeto de 48 milhões de dólares visa remover os cerca de 60 habitantes restantes, reassentá-los em uma nova terra e incentivar que aqueles que já haviam partido se juntem a eles.
Mas não é fácil deixar o lugar que você conhece como lar, não é fácil refazer uma comunidade em um novo ambiente estranho à todos, e muitas pessoas ainda não conseguem aceitar a mudança. Na Isle de Jean Charles os moradores pertencem a um povo nativo chamado Biloxi-Chitimacha-Choctaws que por gerações viveu do que a ilha tinha a oferecer sem precisar recorrer a supermercados, o que não é mais possível.
Assista um curto documentário em inglês sobre os últimos adolescentes morando na ilha.
Pode parecer um clichê falar de povos nativos com uma conexão profunda com o seu território mas a verdade é que todos nós somos assim quando encontramos um lar. Partir é uma decisão muito difícil, mesmo quando todas as evidências apontam para o pior. Preferimos fingir que nada está acontecendo.
Miami é um bom exemplo disso.
Em Miami, enchentes já viraram rotina e sequer dependem de chuvas. Desde 1996 o nível do mar já subiu cerca de 15cm na cidade o que pode até parecer pouco, mas levou a um aumento de 320% na frequência de inundações por conta de marés extraordinariamente altas, chamadas de king tides. Mais de 85 mil pessoas vivem em áreas em até um metro acima do nível do mar, e eles deveriam estar correndo para as montanhas mais próximas. Mas não estão. E olha que eu nem mencionei os furacões…
Se você visitar a cidade jamais imaginará que estamos falando do mesmo lugar pois a cada esquina verá novas construções. Lá, continua-se construindo prédios enormes e luxuosos como se houvesse amanhã, mas a verdade é que talvez não haja.
No ano passado, uma jornalista resolveu se fingir de compradora, visitar esses apartamentos à venda e, fingindo-se de boba, questionar os agentes imobiliários sobre a possibilidade de inundações. Todos acreditam que o problema já foi resolvido já que a prefeitura instalou equipamentos para bombear a água que se acumulava além de elevar muitas das ruas. Nenhum deles consegue acreditar que o pior pode acontecer ali, no seu quintal, e alguns inclusive alegam que isso nunca aconteceria em uma cidade com tantos ricos como Miami.
É claro que tem muita gente querendo lucrar o máximo possível antes que tudo vá por água abaixo. Em uma pesquisa de 2018, atualizada em 2019, concluiu-se que nos Estados Unidos as construções em áreas com risco de enchente cresceram muito mais do que aquelas em áreas seguras, chegando a 3x em alguns lugares.
Há também muita gente já pensando em lucrar com a migração que ainda virá. Aqui no Brasil ainda não temos muitos dados sobre isso, mas nos Estados Unidos é muito fácil achar estudos e matérias respondendo a pergunta “Qual o melhor lugar para morar em 2100?”. Eu mesma confesso que já pensei muito nisso, ano passado até visitamos uma das duas cidades mais mencionadas nas listas e considerada a capital do migrantes climáticos, Duluth, no norte do país.
É preocupante pensar no que isso vai fazer com o mercado imobiliário e o mercado de seguros. Mas o que realmente fica na minha cabeça é que, ao contrário de Ioane, ninguém parece disposto a se mudar ainda e eu sigo me perguntando se, caso seja preciso, saberemos a hora certa de partir ou se perderemos a chance.
Solastalgia
A dificuldade de se deixar um lugar que conhecemos como lar muitas vezes se dá pelo medo da dor do exílio, de se estar longe daquilo que conhecemos, da nossa identidade. Mas há também uma dor em ficar, uma dor que vai além das coisas materiais que porventura perderemos.
Em 2007, o filósofo australiano Glenn Albrecht cunhou o termo Solastalgia para definir a dor de se assistir o seu ambiente, seu lugar no mundo, sob ataque, de testemunhar a sua descaracterização.
Solastalgia não diz respeito ao passado, é sobre vivenciar as mudanças no presente. É a saudade de casa quando em casa se está, mas não mais se reconhece como tal.
Eu acho essa perspectiva muito interessante e achei que cabia introduzi-la junto com a questão do abandono do lar. Se prestarmos atenção, começamos a identificar essa dor já presente em muitos pelo mundo e às vezes em nós mesmos.
Climão da semana
A declaração de Paulo Guedes Para compensar a ausência de Bolsonaro em Davos, o Ministro da Economia Paulo Guedes criou sua própria polêmica ao declarar que “as pessoas destroem o meio ambiente porque precisam comer”. Rapidamente choveram respostas contrárias a afirmação, e para não adicionar mais uma, deixo você com a opinião de terceiros:
Miriam Leitão e a economia do desmatamento (O Globo)
A resposta de Al Gore (Exame)
Por que Guedes errou? (Uol)
Vídeo sobre a ciência por trás da afirmação
Uma banana que viaja o mundo é melhor do que o bife do seu quintal Quando falamos em mudanças que mudanças na dieta podem ser um grande aliado ao combate às mudanças climáticas duas instruções sempre são dadas, coma menos produtos animais e mais produtos locais. Mas acontece que o benefício de uma nem se compara ao da outra. É que quando analisamos a pegada de carbono da cadeia de produção de alimentos, fatores como transporte, comércio, embalagens e mesmo método agrícola, pouco importam em comparação com o tipo de comida (origem animal ou vegetal). O transporte representa apenas 6% das emissões da produção de comida.
Desastres da semana
Ciclone subtropical Kurumí Desde o começo da semana meteorologistas tem nos alertado sobre um ciclone subtropical que se formava na costa brasileira, e a previsão era de chuvas volumosas com potencial para enchentes e deslizamentos de terra. Ontem a noite a formação se localizava a 250km de Macaé, no Rio de Janeiro, e hoje deve afetar a costa nacional da Bahia à Santa Catarina trazendo fortes ventos, chuva, e ressaca do mar com ondas de até 3,5 metros.
Um catálogo de eventos climáticos Na Austrália, além do fogo, chuva com cinzas, granizo, tempestades de poeira, inundações e a população se perguntando “o que mais pode acontecer?”
Nos vemos semana que vem!
Cliquem nos links. Aproveitem seus lares. Comam mais frutas.