Clímax #25: Vidas negras importam. Vidas indígenas importam.
Olá,
Na semana que passou vimos o Brasil alcançar a triste marca de mais de uma morte por minuto por Covid-19. Como se não significasse nada, mais e mais cidades e estados anunciaram seus planos de reabertura e flexibilização do isolamento social e, como uma cereja de chuchu jogada no topo desse bolo de decepção, o governo federal adotou uma estratégia de desinformação, atrasando dados sobre o contágio, dificultando o seu acesso, escondendo os dados consolidados e declarando a possibilidade de uma recontagem dos dados anteriormente divulgados.
Vimos também o debate sobre o racismo se espalhar dos Estados Unidos para as ruas e telas do planeta enquanto a trágica e evitável morte de Miguel escancarou as diversas faces desse problema no nosso país.
Não tem como acharmos que esses temas não estão conectados, e da mesma forma eles se conectam também com a crise climática. Assim, eu não poderia deixar de falar sobre isso hoje.
Como nos lembra Eliane Brum:
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“A solução real para a crise ambiental é a descolonização da raça negra.”
Nathan Hare, 1970. Hare é um sociólogo e ativista americano que criou o conceito de Ecologia Negra nos anos 70.
Os protestos contra o racismo e a violência policial que explodiram nos EUA e se espalharam pelo globo nos últimos dias à partir do assassinato de George Floyd em Minneapolis sedimentaram de uma vez por todas a conexão da pauta racial com a pauta climática. A comunidade climática, suas organizações, ativistas e políticos defensores da causa, veio à público fazendo um mea-culpa pela falta de diversidade no movimento e por erros do passado, e também para defender que as duas lutas estão interligadas. Não existe justiça climática sem justiça racial. Justiça, afinal, é uma só.
Sempre se falou muito da conexão negativa entre racismo e crise climática, ou seja, como a as maiores vítimas da mudança do clima são as comunidades já vulneráveis, o que em um sistema racista significa que a população negra é desproporcionalmente afetada. Mas pouco se fala no lado mais positivo da moeda, no quanto soluções para um problema podem também solucionar o outro. Agora, no entanto, as pessoas parecem estar buscando essas conexões.
Escravidão e colonialismo como causas da crise climática. Essa nossa economia baseada em extrativismo, origem da crise climática, só foi e é possível pois estávamos dispostos a sacrificar certos grupos de pessoas em troca de um suposto progresso. É em áreas povoadas predominante por negros, indígenas e outras minorias que instalamos nossas indústrias mais poluidoras, nossas minas, nossos aterros sanitários. São essas pessoas também os trabalhadores na linha de frente dessas indústrias sujas, suportando condições laborais frequentemente degradantes. As crises se alimentam.
Releia: Colonialism, The Hidden Cause Of Our Environmental Crisis (Aux origines coloniales de la crise écologique no original francês) indicado no Clímax #16.
Sou uma cientista negra especialista em clima. O racismo atrapalha nossos esforços para salvar o planeta. No texto I’m a black climate expert. Racism derails our efforts to save the planet, a bióloga marinha e líder climática Ayana Elizabeth Johnson comenta um efeito indireto do racismo, o gasto de tempo e energia que ele demanda da população negra. Ela cita uma frase de Toni Morrison que diz “A grande função do racismo é a distração. Ele te impede de fazer o seu trabalho. Te deixa explicando constantemente a sua razão de existir.”, para falar sobre tudo o que ela deixou de fazer pela causa climática nos últimos dias por ter que se concentrar no luto e na luta contra a violência policial e o racismo sistêmico nos EUA. Quanto mais já poderia ter sido feito por tantos negros e negras cheios de potencial se não tivessem que dedicar tanto da sua existência em defendê-la?
Isso se torna ainda mais significativo se levarmos em conta que negros americanos tendem a se preocupar muito mais com questões climáticas do que seus conterrâneos brancos, de acordo com uma pesquisa da do Yale Program on Climate Change Communications.
Releia: Uma Outra Negação Climática de Mary Heglar (Climate Denial by Any Other Name no original em inglês) também indicado no Clímax #16.
Cortar o orçamento da polícia e desmilitarizá-la pode ser uma boa política climática? Duas matérias desta semana alegam que sim. O corte no orçamento das polícias é uma das grandes bandeiras dos protestos que acontecem nos EUA neste momento. Várias pesquisas mostram que o aumento do investimento em policiamento não resulta em menos crimes, pelo contrário, muitas vezes pode resultar em um aumento da criminalidade. O artigo de Kate Aronoff para o The New Republic foca na questão da relocação do dinheiro da polícia para investir em programas sociais em áreas de população predominantemente negra que, além de contribuirem para a diminuição da violência, também criariam comunidades mais resilientes inclusive aos efeitos das mudanças climáticas. Kate ainda comenta o fracasso de políticas de precificação de carbono na Califórnia em arrecadar fundos para políticas climáticas, e aponta o desinvestimento da polícia como possível fonte alternativa. Na cidade de Los Angeles, por exemplo, o orçamento policial para o ano fiscal de 2020-2021 é de quase 2 bilhões de dólares. O que mais poderia ser feito com esse dinheiro?
Já a matéria de Brian Kahn para o Earther toca na questão da militarização da polícia - um problema que conhecemos bem - e como o treinamento e o uso de equipamento militar cada vez mais avançado (e caro!) cria uma mentalidade de campo de batalha onde a população é o inimigo. Ele relembra a opressão policial contra populações vulneráveis após desastres meteorológicos como o furacão Katrina em New Orleans, e em protestos ambientais como o de Standing rock, liderado por povos indígenas. Tanto os desastres quanto os protestos devem acontecer mais frequentemente com o aumento das temperaturas globais, o que, para o autor, significa que ações policiais violentas devem aumentar também. Isso seria então mais um argumento para considerarmos o corte de orçamento da polícia como boa política climática.
Leia também: After the storm e Climate Change Isn’t Racist — People Are também de Mary Heglar. Na dúvida, sempre conte com Mary para apontar as conexões entre raça e clima.
A pandemia indígena
Assim como as doenças que dizimaram povos nativos no passado, trazidas por europeus em seus imundos navios colonizadores, o novo coronavírus chegou nas aldeias brasileiras e se dissemina rapidamente. De acordo com os dados compilados pelo Brasil.io divulgados na plataforma COVID-19 e os Povos Indígenas do Instituto Socioambiental, neste domingo 79 óbitos e quase 2000 mil casos da doença haviam sido confirmados entre indígenas rurais.
Um estudo da Unicamp calculou que mais 81 mil indígenas estão em situação de vulnerabilidade crítica.
Segundo os pesquisadores, as maiores preocupações são a falta de acesso tanto à serviços de saúde quanto à produtos de higiene. Eles ressaltam ainda as tradições de vida comunitária dos povos, que dificultam o isolamento entre eles, e a suscetibilidade biológica que eles teriam ao vírus por historicamente terem tido muito menos contato com patógenos do que a população não-indígena.
“A covid-19 já está tendo uma dimensão de genocídio para os povos indígenas. Até o dia 01/06/2020 haviam morrido 182 indígenas no Brasil. Os contaminados eram 1868. Houve um aumento de 550% no número de mortes em 1 mês. A taxa de letalidade na população em geral é de 5,7%, enquanto na população indígena é de 9,7% [dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - APIB]. Ou seja, está morrendo muito mais indígena pelo simples fato de ser indígena.” Disse a GQ Brasil o neurologista Erik Jennings Simões, um dos 5 médicos na linha de frente do tratamento do coronavírus na Amazônia.
Para alguns povos o risco é especialmente alto. Um estudo produzido pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pelo Instituto Socioambiental (ISA), classificou os yanomami como "o povo mais vulnerável à pandemia de toda a Amazônia brasileira". A razão seriam os garimpos ilegais na Terra Indígena Yanomami, que contam com a presença de cerca de 20 mil garimpeiros. De acordo com matéria da BBC Brasil, no território que tem área equivalente à de Portugal, quase 14 mil indígenas vivem a até 5km de distância de garimpos, o que os coloca em grande risco de contágio devido a movimentação dos garimpeiros entre o território e a cidade.
Reservas indígenas como o Parque do Xingu, proibiram o acesso de pessoas de fora, mas controlar o acesso de estranhos à certos territórios, como no caso dos garimpeiros ilegais, é algo que só o Estado pode fazer e é essencial para controlar a doença nessas regiões.
Na terra indígena do Vale do Javari, que abriga 10 dos 28 registros de grupos indígenas isolados no país, há preocupação também com a presença de missionários. O procurador jurídico da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Eliésio Marubo disse ao G1 que uma ação foi feita para cobrar das autoridades competentes que se garanta o afastamento de pessoas ao convívio da comunidade, se preciso com uso de autoridade policial.
Outro passo importante é tornar a testagem mais disponível para todos os povos, o que traz vários problemas de logísticas por muitas comunidades se localizarem em regiões de difícil acesso.
O vírus não mata só pessoas, pode também matar a cultura de algumas etnias que em sua maioria depende da transmissão verbal do conhecimento dos membros mais velhos aos mais novos. Várias aldeias já perderam suas lideranças e seus anciões. Os Mundukurus já perderam sete idosos, já a etnia xikrin perdeu um líder e mais 4 pessoas, incluindo uma criança.
Leia mais: Como os povos indígenas brasileiros veem a pandemia de Covid-19 de Nathan Fernandes para o Tab/Uol.
Desastres recentes
Gafanhotos chegam à Índia Parece brincadeira que já faz quatro meses que eu falei da peste de gafanhotos pela primeira vez por aqui. Na época eles eram problema imenso apenas em partes do leste da África, agora já alcançaram Irã, Paquistão e a Índia. O cientistas culpam as mudanças do clima por criarem o ambiente perfeito para esse surto que conta com enxames que em um só dia viajam 200km comendo o comeriam 35 mil pessoas!
Ciclones indianos Se em todos os países por onde passam os gafanhotos pioram a crise sanitária e econômica causada pelo coronavírus, na Índia a conversão de desastres é ainda pior. No mês passado o ciclone Amphan atingiu a região da Bengala Ocidental e sua metrópole Calcutá, na Índia além de Bangladesh, causando imensa destruição e mais de 80 mortes. Nesta semana, outro ciclone, Nisarga, atingiu a região de Mumbai que não vivenciava um ciclone desde 1948. Em ambos eventos centenas de milhares de pessoas precisaram ser evacuadas em meio à uma pandemia que demanda isolamento social.
Vazamento de óleo causado pela mudança do clima? Putin declarou estado de emergência na Rússia após vazamento de mais de 20 mil toneladas de diesel em um rio na Sibéria. O tanque de armazenamento do óleo afundou devido ao derretimento do pergelissolo (ou permafrost), o solo congelado que ocupa 55% do país. Como a maioria da infra-estrutura russa de extração de óleo e gás está localizada nesse tipo de solo, esse pode ser apenas o primeiro de vários desastres que veremos com o aumento das temperaturas globais. O governo ordenou uma fiscalização de todas as instalações perigosas localizadas em território exposto ao derretimento.
Branqueamento de corais brasileiros Esta notícia é lá do começo de maio, mas acabei não conseguindo falar disso aqui antes. Há um surto de branqueamento de corais em vários locais da costa do nordeste, incluindo Fernando de Noronha e Maragogi. O Observatório do Clima tem uma ótima matéria sobre o caso.
Boas notícias no Brasil
Ricardo Salles revogou o despacho assinado em abril onde determinou que os órgãos ambientais federais adotassem as regras do Código Florestal na Mata Atlântica, o que basicamente anistiava o uso indevido de APPs (áreas de proteção permanente) no bioma.
Na sexta-feira, Dia Mundial do Meio Ambiente, entidades, promotores e partidos políticos entraram com 3 ações contra o governo por omissão em políticas ambientais. As ações pedem ainda a retomada do Fundo Amazônia e do Fundo do Clima (que está com R$ 357 milhões parados pois o Ministério do Meio Ambiente ainda não divulgou o plano de aplicação dos recursos) e a anulação de uma instrução normativa que facilita a exportação de madeira sem fiscalização prévia do Ibama.
Ainda no mesmo dia, Frente Parlamentar Ambientalista protocolou pedido de impeachment de Ricardo Salles por crime de responsabilidade. São destacados atos do Poder Executivo em matéria ambiental que teriam como objetivo ou consequência o enfraquecimento da política de gestão de unidades de conservação e o desmonte das estruturas que possibilitam a execução da política e fiscalização ambiental.
O dinheiro do Fundo Petrobras, recuperado pela operação lava-jato, que foi destinado aos governos estaduais da Amazônia legal para o combate ao desmatamento finalmente chegou ao seu destino. Após partilha com secretarias da agricultura, por exemplo, e o desvio legal de certas quantias para o combate ao Covid-19, por volta de 140 milhões de reais foram divididos entre as secretarias de meio-ambiente dos estados. O dinheiro fará grande diferença e será usado para compra de equipamento e contratação de mais pessoal - só no Pará os fiscais aumentarão de 10 para 110. É um alento que poderá ajudar a tapar o buraco deixado pelos cortes no Ibama.
Nos vemos em breve.
Não deixe de encontrar tempo para cuidar de você e descansar. Estamos todos exaustos.