Clímax #23: indivíduo x sistema, resumo do Brasil e rosquinhas
Olá,
Ultimamente, toda vez que eu sento para escrever um Clímax eu chego com a intenção de voltar ao formato original listando as notícias mais recentes relacionadas à crise climática e acabo escrevendo um textão. Obviamente, hoje não foi diferente. Pelo menos consegui voltar para a sexta-feira.
Joguei o textão pro final e começo com uma retrospectiva do que andou acontecendo no Brasil desde que começou a pandemia no que diz respeito ao meio ambiente.
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Climão brasileiro
Tudo ao nosso redor parece querer nos forçar a falar do coronavírus 24 horas por dia, mas tem muito mais acontecendo aqui mesmo no Brasil. Caso você tenha perdido, vamos dar uma passada no que andou acontecendo no meio ambiente do país desde que a pandemia começou:
Os alertas de desmatamento na floresta Amazônica cresceram 63,75% em abril de 2020 se comparado ao mesmo mês do ano passado de acordo com dados do INPE divulgados hoje. Mato Grosso foi o estado com maior área desmatada.
As mudanças do uso da terra representam a maior parcela das emissões de gases de efeito estufa do Brasil. Como a pandemia não tem impactado o avanço do desmatamento, nosso país provavelmente irá contra a tendência mundial de diminuição de emissões devido ao coronavírus e aumentará as suas.
Pantanal tem recorde histórico de queimadas no início de 2020, tanto em número de focos quanto em área queimada. Em março e abril, já com a pandemia, o número de focos foi o maior já visto nesses meses. E a temporada de fogo ainda nem começou.
A polêmica MP 910, ou MP da grilagem, que permite que quem invadiu áreas públicas depois de 2011 (até então a data limite) possa regularizar essas terras, além de ampliar o tamanho das propriedades que podem ser regularizadas, pode caducar se não for votada até o dia 19. De acordo com O Globo, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse que só colocará em votação se os líderes dos partidos entrarem em acordo nos próximos dias. Enquanto isso, o relator da medida na Câmara, deputado federal Zé Silva (SD-MG), disse ao Valor que já tem 90% de consenso sobre o texto. Há forte pressão do Presidente e da Frente Parlamentar Agropecuária para que a medida seja aprovada e dos ambientalista para que não seja votada.
No mês passado o Ministro Ricardo Salles deu anistia a produtores rurais que desmataram APPs na mata atlântica até julho de 2008. O despacho do Ministro cria uma disputa legal pois pretende que se faça valer sobre essas APPs o Código Florestal acima da Lei da Mata Atlântica, que até então prevalecia o que, de acordo com alguns juristas, não é correto. As APPs, ou áreas de proteção permanente são preservadas por serem áreas com funções ambientais importantes, como as margens de cursos d’água que são fundamentais para a segurança hídrica. Elas são definidas por sua função e independem do tamanho da propriedade. Não as confunda com a reserva legal que é aquela área prevista por lei que toda propriedade precisa manter com vegetação nativa, que no caso da mata atlântica é de 20% e que, em teoria, poderia ser recuperada em outro local.
Funai editou medida que permite ocupação e venda de terras indígenas não homologadas, deixando vulneráveis povos que aguardam a conclusão de seu processo de homologação, o que chega a durar dezenas de anos. As terras agora poderão ser cadastradas como propriedade particular no Sistema de Gestão Fundiária e seus invasores ficaram aptos a vendê-las, usá-las para pecuária ou outras atividades.
Pará, o estado brasileiro líder em emissões de efeito estufa, publicou nesta semana uma lei que institui a Política Estadual sobre Mudanças Climáticas do Pará. Embora a lei ainda não traga metas de diminuição de emissões, ela coloca o tema em um novo patamar de importância na região e promete iniciar uma conversa mais ambiciosa que pretende contemplar todos os atores, reforçando a participação de comunidades locais como indígenas, quilombolas.
A Obsessão de Bolsonaro pela (não) destruição de maquinário ilegal
Seguindo a troca de acusações com o ex-Ministro Sérgio Moro, na terça-feira o Presidente resolveu que era sua vez de exibir mensagens particulares entre os dois. Entre a discussões sobre a Polícia Federal, Bolsonaro acabou mostrando um trecho em que Moro falava sobre uma ação do Ibama.
"Coronel Aginaldo da FN [Força Nacional] também nega envolvimento da FN nas destruições. FN só acompanha Ibama nas operações para segurança dos agentes, mas não participa da destruição de máquinas" escreveu o ex-Ministro em resposta à mensagens não visíveis, mencionando o diretor da Força Nacional.
A mensagem, do dia 22 de abril, provavelmente se referia à uma operação do Ibama no Pará que destruiu dezenas de máquinas usadas no garimpo ilegal e foi mostrada no Fantástico. A operação resultou na exoneração do diretor de Proteção Ambiental do órgão, Olivaldi Azevedo e posteriormente de mais dois líderes de sua equipe.
Não foi a primeira vez que Bolsonaro questionou um ministro sobre a destruição de equipamento. Em abril de 2019, o presidente publicou um vídeo em que desautorizava uma ação do Ibama em Rondônia, dizendo que: “Não é pra queimar nada, maquinário, trator, seja o que for, não é esse procedimento, não é essa a nossa orientação” e mencionando que já havia conversado com o ministro do meio ambiente que, de acordo com ele, teria aberto um processo para apurar os responsáveis.
Desde então a destruição de equipamentos usados em crimes ambientais tem caído. De acordo com matéria do Intercept, em 2019 houve uma redução de 50% em relação à média anual entre 2014 e 2018 e apenas 72 máquinas foram destruídas.
Porém, em um país onde multas ambientais raramente são pagas, a destruição de equipamento é a forma mais eficaz de causar prejuízo financeiro aos criminosos e evitar que continuem causando danos ao meio ambiente, e está autorizada pela Lei de Crimes Ambientais. O maquinário pode ser destruído quando não é possível retirá-lo do local em que foi apreendido o que ocorre muito em operações dentro das florestas e terras indígenas.
A mais recente ofensiva de Bolsonaro na sua luta contra a destruição de equipamento parece ser o decreto de Garantia da Lei e da Ordem na Amazônia Legal publicado ontem, que autoriza o envio das Força Armadas à região para coordenar ações para conter o desmatamento e as queimadas e determina que os órgãos ambientais que participarem, o Ibama e o ICMbio, serão coordenados pelos Comandos.
Como o próprio Moro confirmou, outras forças tendem a se recusar a participar da destruição de maquinário, mas em operações coordenadas pelo Ibama não podem impedi-los de fazê-lo se assim quiserem. Com a nova GLO esse talvez não seja mais o caso.
Com menos equipamento sendo destruído e menos multas sendo aplicadas - 2019 viu a menor quantidade de multas em 24 anos - qual o intuito de mandar as Forças Armadas para a Amazônia?
Dados da vez
De mudança para a Sibéria Nos últimos 6 mil anos a humanidade preferiu se concentrar em áreas da Terra com temperatura média anual entre 11 e 15 graus Celsius, esse é o nosso “nicho climático”. Com o aquecimento do planeta esse nicho representará uma área cada vez menor, então, se a humanidade quiser seguir esse padrão de milhares de anos o que vai acontecer nos próximos 50 anos? Um grupo de pesquisadores se propôs a responder essa questão em um estudo publicado nesta semana na revista cientifica Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA. Utilizando diferentes cenários de mitigação e crescimento populacional, o estudo aponta o nicho se movendo para latitudes cada vez mais altas ao mesmo tempo em que a população crescerá em latitudes mais baixas, indicando que - pelo menos em teoria - a população precisaria se redistribuir geograficamente. No pior dos cenários, até 2070 podemos ter 3,5 bilhões de pessoas migrando ou vivendo em condições climáticas que nossa espécie nunca tolerou por muito tempo. Isso porque essas pessoas viverão em áreas cuja temperatura média anual será maior que 29 graus Celsius, uma condição que hoje só encontramos em 0.8% das terras do planeta, como no Saara, mas que em 2070 poderá ser realidade em 19% da área terrestre, o que inclui boa parte do Brasil.
As listras representam as áreas com temperatura média anual de mais de 29C em 2070, no cenário RCP8.5 do IPCC, conhecido como business as usual. As cores de fundo representam as médias atuais.
Ação individual x mudança estrutural: o caminho para o futuro é de mãos dadas
Não sei bem porque ainda perdemos tempo com o debate ação individual x mudança estrutural, mas cá estou. Esse assunto vai e volta e insiste em colocar de um lado a crença de que nossas escolhas pessoais, o nosso poder como consumidores pode mudar o mercado que por sua vez mudará o sistema, e do outro a crença de que o sistema pode mudar e nos salvar sem que nós mudemos juntos. Mas será que essas crenças sequer existem? Existem mesmo dois lados?
Me parece que essa é apenas uma discussão sobre foco, prioridades e principalmente de estratégia de comunicação, porque a dicotomia não existe de fato, no fundo todo mundo sabe que as duas coisas são necessárias. Por que então seguimos discutindo?
Pois esse debate foi reacendido pela pandemia.
Em um dos meus primeiros emails sobre o coronavirus eu comentei que um dos efeitos dessa nova crise tinha sido deixar claro que ações individuais sem suporte estrutural não resolvem problema algum já que, ao ficarmos em casa para controlar a contaminação, causamos uma crise econômica e milhões de desempregados. Curiosamente, não me lembro se foi no mesmo dia ou alguns dias depois, a Emily Atkins escreveu na sua newsletter Heated exatamente o contrário, que ela sempre havia acreditado que a ação individual não poderia ser significativa mas que a pandemia a fez mudar de opinião. De acordo com ela, a falta de ação do governo (nesse caso dos EUA) fez com que as medidas individuais se tornassem essenciais e ela citava basicamente pessoas se ajudando, se organizando para levar mantimentos para quem precisa, doando para bancos de alimento, comprando do comércio local para que se mantenham, etc.
Por um segundo ali eu pensei “ué, será que estou olhando para isso do jeito errado?”, mas logo voltei para a minha conclusão original e hoje vejo que a reação da Emily foi muito mais emocional do que racional. Embora nossas ações como cidadãos tentando fechar os buracos deixados pelo Estado sejam imprescindíveis em certos momentos e façam a diferença na vida de muitos, elas nunca serão o suficiente.
Um pouco depois disso apareceu o texto What Covid Is Exposing About the Climate Movement (O Que o Covid Está Mostrando Sobre o Movimento Climático), em que o autor argumentava que a pandemia, que fez o céu voltar a ser azul, provava que a estratégia de dizer que a culpa não é sua (do indivíduo) está errada. Mais uma vez o debate se instalou pela internet.
Então mais recentemente o Grist publicou The world is on lockdown. So where are all the carbon emissions coming from? (O mundo está trancado em casa. Então de onde está vindo toda essa emissão de CO2?), seguido do It Took A Pandemic To Prove Individual Actions Alone Won't Solve The Climate Crisis (Foi Preciso Uma Pandemia Para Provar Que Ações Individuais Sozinhas Não Vão Resolver a Crise Climática) da Amy Westervelt, e ambos trazem à tona uma questão que os textos anteriores não mencionavam: as emissões.
Quando se fala em ação individual no contexto da crise climática se fala em mudança de estilo de vida. O que sempre se sugere como ações de maior impacto são aquelas relacionadas a transporte e dieta. Troque o carro pela bicicleta, use transporte público, pare de voar, não coma mais carne. Pois nos últimos meses trocamos o carro por não sair de casa e ninguém mais está voando. O caso da dieta é um pouco menos óbvio. O isolamento mudou a alimentação da grande maioria que agora se vê tendo que cozinhar tudo o que consome - às vezes pela primeira vez na vida - mas não necessariamente fez com que tirássemos a carne do prato. Se bem que até isso pode mudar em alguns lugares, os EUA já se prepara para um desabastecimento de proteína animal por conta do alto índice de contaminação de trabalhadores em frigoríficos e muitas pessoas já estão considerando alternativas.
As tais mudanças de estilo de vida ocorreram de fato, ainda que forçadas e provavelmente temporárias. O resultado? Belos dias de céu azul, diminuição da poluição em muitos lugares, fauna que que retorna, mas em termos de emissões a queda anual esta prevista para apenas 5,5%. Lembrando que, de acordo com a ONU, as emissões precisam diminuir 7,6% por ano se quisermos uma chance do aumento de temperatura ficar abaixo de 1,5C.
Ou seja, tudo o que nós como indivíduos - mesmo na grande escala que vemos hoje - conseguimos fazer é diminuir minimamente as emissões. Ficamos em casa mas ainda precisamos que a comida chegue até nós, continuamos usando a eletricidade disponível o que em muitos lugares ainda significa carvão, ou fazemos nossas comidas e esquentamos nossos chuveiros e ambientes com gás. Ainda que tenhamos parado de voar, por muito tempo aviões seguiram voando vazios para não perderem seus slots nos aeroportos. Governos seguem salvando as indústrias do transporte e de combustíveis fósseis de prejuízos ou mesmo da falência.
Se voltarmos a pensar no vírus em si, de que serve ficarmos em casa se não houver hospitais suficientes para aqueles que seguem nas ruas nos dando o suporte necessário para que não precisemos sair? Toda mudança precisa de estrutura. Mas mudanças estruturais também só estarão completas se as pessoas mudarem com elas.
Não adianta a gente seguir nessa disputa entre o ovo e a galinha. Não existe vencedor. Está mais do que na hora de levantarmos a bandeira branca e encerrarmos essa discussão. Quem fala em esperar por mudanças no sistema não está dizendo que individualmente não precisaremos mudar também, não existe fórmula em que o nosso estilo de vida continue o mesmo. Quem diz que cada um de nós precisa repensar suas próprias escolhas não acha que andorinha sozinha faça verão.
É um equilíbrio entre esse micro e macro que facilita a transição. É preciso darmos passos juntos.
O exemplo holandês
Vocês lembram de quando, ainda no ano passado, eu contei aqui que a Suprema Corte da Holanda havia decidido à favor de um grupo de ambientalistas em uma ação contra o governo e mantido uma ordem de 2018 para que até o final de 2020 o país diminuísse em 25% as emissões de gases de efeito estufa do país em comparação àquelas de 1990?
Pois bem, já estamos quase no final do primeiro semestre e, mesmo no meio de uma pandemia, o governo Holandês teve que tomar providências para cumprir tal ordem. No final de abril foi anunciado um pacote de medidas de 3 bilhões de euros para cortar as emissões do país nos próximos meses.
Essas medidas envolvem, entre outras coisas, incentivos do governo à mudanças individuais como subsídios para quem usar menos concreto nas construções residenciais, ou para quem adicionar mais plantas aos seus quintais, compensações para pecuaristas que diminuirem seus rebanhos e apoio financeiro para diminuir o consumo energético de residências que inclui um programa de substituição de eletrodomésticos de baixa eficiência. É um ótimo exemplo de mudanças estruturais e ações individuais andando de mãos dadas.
Já que falamos de Holanda… Amsterdã anunciou que será a primeira cidade do mundo a adotar o modelo de economia donut como base para suas decisões de políticas públicas. O modelo deixa de lado a obsessão pelo crescimento econômico e traz para o centro da discussão os limites naturais do planeta. A cidade ganhou um modelo adaptado à escala municipal no formato de uma “ferramenta para ação transformativa” e se propõe a combinar aspirações locais com responsabilidades globais para encontrar medidas que respeitem todas as pessoas e todo o planeta.
Leia o documento apresentando a ferramenta (em inglês).
Ou uma breve apresentação da ideia de economia donut, caso você não conheça.
Leituras
Consumo consciente à venda? Na semana que passou eu gostei muito de ler o texto The more Patagonia rejects consumerism, the more the brand sells (Quanto mais a Patagonia rejeita o consumismo, mais a marca vende) da Emy Demkes para o The Correspondent. Emy nos apresenta o histórico ambientalista da marca de roupas para atividades ao ar livre e aventuras que é pioneira em métodos de produção mais éticos. Do uso de material reciclável, ao uso de algodão orgânico, à busca por fornecedores responsáveis sócio e ecologicamente, a Patagonia parece pensar em tudo, inclusive na durabilidade de seus produtos, oferecendo consertos de graça para sempre. Eles erram também, mas assumem a responsabilidade e buscam soluções novas, estão sempre aprendendo e querendo fazer mais. Doam 1% da sua arrecadação (não do lucro!) anual, criaram uma organização para trabalhar com outras marcas e pesquisar como melhorar a indústria da moda, não tem medo de se envolver diretamente com a política e até criaram uma campanha publicitária onde diziam para não comprarem suas jaquetas. Tudo muito bonito, mas ainda assim a empresa não para de produzir e vendem bilhões de dólares por ano. Esse é um dilema grande dentro da própria empresa, consumo é consumo.
Eu gosto muito da fala do CEO que comenta o esforço da empresa em evitar o termo sustentável:
Uma boa reflexão sobre os limites da responsabilidade social de empresas, mas também sobre o quanto mais poderia estar sendo feito por tantas outras organizações, principalmente da indústria da moda.
Obrigada por acompanhar o Clímax.
Bom fim de semana e nos vemos em breve!