Clímax #33: você já parou de crescer?
Pensando no crescimento e no decrescimento nas nossas vidas.
Olá,
Em uma newsletter recente eu falei sobre a dificuldade de separar as mudanças climáticas que já aconteceram e as que ainda podem acontecer, e na semana passada li uma matéria no New York Times que me pareceu ter acertado justamente esse ponto. Com o título Climate disruption is now locked in. Next moves will be crucial, a matéria é uma conversa com uma dúzia de especialistas em clima e deixa claro que não podemos achar que 2020, com todas suas tragédias e desastres ambientais, seja um exemplo do futuro que nos espera caso não façamos mais pelo problema. Este ano, na verdade, é um exemplo da batalha que já perdemos. Quando falamos em mitigação, em descarbonização e em justiça climática, estamos falando de esforços para evitar que as transformações sejam ainda piores do que vemos hoje, pois tem tudo para ser. Falamos também de planejamento e preparação para enfrentar eventos como os que vimos este ano (fogos, furacões, ondas de calor, etc,) e que continuarão sendo comuns. Precisamos diminuir seus impactos e o número de pessoas afetadas. 2020 não é uma janela para o futuro, 2020 é o presente como é.
Extra: Uma grande matéria interativa do New York Times com versão EM PORTUGUÊS sobre a Amazônia. A Amazônia Já Viu o Nosso Futuro contém uma dezena de textos de opinião escritos por especialistas, além de três poemas.
Tivemos também boas notícias. Na Assembleia Geral da ONU, enquanto os treteiros habituais davam seus discursos sem pé nem cabeça, Xi Jinping anunciou que a China pretende neutralizar suas emissões de CO2 até 2060, alcançando pico de emissões até 2030. É claro que o anúncio não é perfeito, não tem detalhes e não garante nada, mas é um ótimo sinal pois o país não costuma tornar público planos que não pode cumprir. Suas metas de redução para 2020, por exemplo, foram atingidas com três anos de antecedência. As novas metas podem evitar o aumento de 0,2 a 0,3C na temperatura global, e também colocam pressão nos EUA que, por muito tempo, usou as emissões chinesas como desculpa para não fazer mais pelo clima.
No entanto, na Cúpula da Biodiversidade da ONU que está acontecendo esta semana e tem a China como anfitriã, o país decepcionou e não apresentou nenhum plano para a área. Além disso, pouco antes do começo do evento, mais de 70 países participantes assinaram o Leaders’ Pledge for Nature (Pacto de Líderes pela Natureza), um compromisso com um plano de 10 pontos para reverter a perda de biodiversidade no mundo, e a China não foi um deles. Brasil, EUA e Austrália também não assinaram.
Mudando de assunto, andei lendo textos que me fizeram revisitar newsletters passadas. Na Refinery 29, li sobre como os novos modismos consumistas de auto-cuidado prejudicam as comunidades de onde esses símbolos de espiritualidade de fato se originam, como o Palo Santo e os povos indígenas que sempre o usaram. Um ótimo complemento ao Clímax 30.
Já 'Wakanda Doesn't Have Suburbs': How Movies Like Black Panther Could Help Us Save the Planet, que a Kendra Pierre-Louis escreveu para o livro All We Can Save* e foi reproduzido pela Time, fala sobre a importância de criarmos narrativas de futuros felizes e cita Wakanda, o país fictício de Pantera Negra como exemplo de uma sociedade a se almejar, onde humanos se relacionam com a natureza de igual para igual. Kendra menciona o quanto a arte já inspirou a criação de novas tecnologias, como foi o caso do telefone celular e até da bomba atômica, e me lembrou do Clímax 28.
Cientistas concordam que a ficção realmente tem o poder de moldar a nossa visão e o nosso futuro. Uma pesquisa liderada pela Universidade de Yale em Cingapura concluiu que ler obras literárias de ficção sobre a crise climática aumenta os níveis de preocupação, percepção de importância e a percepção de que a crise impactará pessoalmente o leitor. O efeito, porém, é temporário, ou seja, é importante que haja uma continuidade através de uma diversidade de opções sobre o tema.
Um bom exemplo de ficção otimista sobre o futuro é o vídeo A message from the future, que eu mostrei aqui em alguma edição passada e cuja continuação foi divulgada nos últimos dias. É um bom aperitivo para o texto que vem na sequência.
Mas antes, não posso deixar de contar que saiu uma matéria minha na última edição da Revista Claudia sobre movimentos humanos motivados pela crise climática. Quem quiser já pode encontrá-la no site.
*All We Can Save é uma antologia com textos, poesias e ilustrações sobre a crise climática feita por mulheres na linha de frente do movimento climático, com o intuito de trazer esperança expondo o poder da liderança feminina. A gente bem que podia fazer uma versão brasileira, né? O que não falta são mulheres incríveis por aqui.
O crescimento da economia se relaciona com o seu crescimento pessoal?
É comum ouvirmos que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, porém, embora signifique basicamente a mesma coisa, se trocarmos capitalismo por crescimento, a contradição fica ainda mais clara. É mais fácil acreditarmos no crescimento eterno do que acreditarmos que é possível viver sem crescer. No entanto, o crescimento eterno em si é uma lenda ou, como bem disse Greta Thunberg, um conto de fadas. Foi necessário primeiro que nos vendessem essa fantasia como realidade, e acabamos levando isso tão a sério que hoje já não enxergamos o que é real, físico, palpável e visível seja no céu vermelho de fumaça, nas enchentes, no desaparecimento de espécies e do gelo, na falta de certos alimentos, entre tantos outros desastres: o planeta é um só e nossos recursos são finitos. Crescer para onde?
Vivemos hoje em crescimentocracias onde o poder está no crescimento econômico – que ganha eleições e respeito internacional - sobrepondo-se assim à vontade e ao bem estar do povo. A pandemia expôs o problema com maestria. Se salvar vidas prejudica a economia, talvez as vidas não importem tanto assim.
Nos dizem que o crescimento econômico é necessário para melhorar o bem estar da população, no entanto, quando a economia cresce, o investimento nesse bem estar é visto como um impedimento para a continuidade do crescimento, ficando sempre para depois. Primeiro a gente cresce o bolo e depois a gente divide, mas a hora de dividir nunca chega e já temos um daqueles bolos de casamento dos anos 80 que está mais para torre de babel.
Enquanto isso, para produzir mais, fazemos os produtos durarem menos, transformamos em produto o que antes não era e fabricamos novas necessidades. Usamos mais e mais recursos, cada vez por menos tempo. Em uma crescimentocracia, não importa o que se produz, desde que cresçam os números. Armas, comidas que fazem adoecer, remédios para tratar essas doenças, a reconstrução pós desastres que poderiam ter sido evitados, tudo isso move a economia.
Há várias décadas se discute os limites desse crescimento, não há nada de novo, mas a palavra decrescimento e os movimentos e ideias relacionados estão cada vez mais populares. Decrescer não significa ter como objetivo reduzir a economia, mas sim, não ter a economia como objetivo. A ideia é justamente mudar a forma de se medir o sucesso de uma sociedade, tirando o foco do PIB e criando-se outros indicadores que se encaixem nos limites do planeta e, de quebra, melhorem a qualidade de vida da população. Existe uma gama de propostas diferentes sobre quais deveriam ser os novos indicadores e como aplicá-los.
Mas essa narrativa do crescimento como objetivo maior não se limita à economia, ela é tão forte que invade a nossa vida pessoal. Está presente naquela ideia de que o ser humano sempre quer mais, seja em termos materiais, seja nos relacionamentos ou no que for. Quem não cresce está estagnado, e essa estagnação é entendida como falta de esforço ou falta de ambição, duas coisas muito mal vistas na nossa sociedade. Reclamamos da insatisfação geral, mas não permitimos que ninguém esteja satisfeito com o que se tem ou com o que se é.
Quando eu criei a newsletter, eu não tinha grandes intenções, só queria debater o assunto com outras pessoas, mas quantas? Comecei com menos de uma centena de assinantes e aos poucos foi crescendo de forma orgânica e então tornou-se prazeroso ver os números mudarem. É fácil se deixar levar pois essa é a medida de sucesso que conhecemos. Mas quando você cresce de 1 para 2, o prazer está no 1 a mais ou no 2 final? É preciso continuar crescendo para ter sucesso, ou o sucesso é um número a ser atingido?
Até o nosso crescimento pessoal parece ter sido mercantilizado. Falo de conhecimento, da maturidade das emoções, do auto-conhecimento, do entendimento do outro, um crescimento que talvez não tenha mesmo limites, mas que também parece ter entrado na lógica da produtividade. É preciso ler cada vez mais livros, assistir a mais palestras, meditar mais, fazer mais amigos, ter mais opiniões, ter mais insights sobre a própria vida e torná-los públicos. É preciso estar constantemente em um estado de procura, e cada vez mais o nosso crescimento pessoal depende do nosso crescimento financeiro.
Se formos literais e olharmos de fato para o nosso crescimento econômico pessoal, o da nossa renda, será que é possível parar de querer crescer? Digamos que anunciem hoje que você nunca mais receberá um aumento de salário, apenas um ajuste anual de acordo com a inflação, o que você acharia? Talvez soe como um bom negócio se chamarem de aposentadoria e você não precisar mais trabalhar.
Antes de seguir, quero deixar claro que o Clímax não é uma newsletter de autoajuda. Não estou tentando te fazer ver que você já tem o bastante, que o seu salário é ideal e você apenas não tinha se dado conta. No Brasil, cerca de 62 milhões de pessoas vivem em lares cuja renda per capta é menor do que 350 reais por mês. A maioria das pessoas no mundo não tem o bastante, e é bem possível que você seja uma delas.
Este, obviamente, também não é um texto sobre como “a mudança começa com você” e como você precisa “decrescer” primeiro para então exigir o decrescimento da economia mundial. Eu estou pensando em como essa narrativa nos afeta, não em como nós a afetamos. A questão não é quanto você ganha e se deveria ou não se contentar com isso, mas sim se temos de fato algum parâmetro para o que é o bastante, se estaríamos dispostos a aceitá-lo como tal ao o alcançarmos, e se, no fundo, sequer temos essa opção.
Há quem diga que é da natureza humana nos adaptarmos às mudanças na nossa renda, que conforme nossa situação melhora movem-se também nossos pontos de referência e então, qualquer ganho é apenas temporário. Ou seja, quando atingimos a meta, dobramos a meta.
Esse papo de natureza humana é algo que eu costumo rejeitar pois envolve só defeitos, nunca qualidades. É um bode expiatório que cria uma forma de síndrome de impostor da espécie, nos fazendo achar que todas as vezes que acertamos coletivamente foi por acaso, e que a tendência é em algum momento devorarmo-nos uns aos outros até não sobrar ninguém.
Você realmente se identifica com essa descrição?
O renomado economista John Maynard Keynes, grande defensor do capitalismo, parecia discordar de que estaríamos fadados a essa busca sem fim. Há quase 100 anos, ele previu que em 2030 não agiríamos mais dessa forma, que não teríamos mais o desejo de consumir por consumir e o dinheiro não seria mais visto como algo a se possuir e acumular, mas sim, apenas um meio para se alcançar as alegrias da vida.
No texto Economic Possibilities for our Grandchildren, publicado em 1930 enquanto o mundo se perguntava como sairíamos da crise começada no ano anterior, Keynes trazia esperança com imagens de um futuro promissor. Ele dizia que ainda era momento para a avareza reinar, mas que em um século ela não seria mais necessária, viveríamos em um mundo onde o problema econômico teria sido solucionado. A qualidade de vida seria maravilhosa, não precisaríamos mais produzir tanto pois o consumo já não seria tão importante, e todos trabalhariam no máximo 15 horas por semana.
Acho que ele não contou com essa avareza levando à uma desigualdade tão extrema que nunca permitiu que se satisfizessem as necessidades básicas de todos. No 2030 dele, o maior problema para a humanidade seria descobrir o que fazer com tanto tempo livre, mas seriamos solidários uns com os outros até nesse aspecto. As pessoas teriam optado por trabalhar três horas por dia para poder dividir suas funções com os outros, permitindo que todos tivessem um pouquinho daquela sensação de propósito que, em teoria, só o trabalho traz para as nossas vidas.
Mas se você não é nem avarento e nem invejoso, se não se identifica com essa história de natureza humana, você está pronto então para parar de crescer?
Ainda que você tenha chegado à conclusão de que você tem o bastante para viver uma boa vida no presente, estamos sempre preocupados com o futuro. Nossa renda sempre pode ser maior porque sempre podemos guardar um pouco mais para um futuro incerto. Nem sempre se cresce para mudar de padrão de vida, muitas vezes crescemos em uma tentativa de manter o padrão de vida que nos parece suficiente.
Por sabermos o quão grande é o vão entre o quanto podemos cair e o quanto podemos voar, viver só no presente se torna difícil. Se todos nós tivéssemos nossas necessidades básicas garantidas agiríamos como as pessoas no futuro de Keynes? Deixaríamos de querer acumular para garantir o porvir?
Será então que a desigualdade existe porque somos competitivos por natureza ou somos competitivos porque há desigualdade? A nossa acumulação de riquezas cria a desigualdade e a desigualdade nos faz achar que precisamos acumular mais?
Que bom seria se as previsões de Keynes estivessem mesmo prestes a se tornar realidade. Quando o economista escreveu essas palavras, a crise climática estava muito longe do seu radar, não havia uma preocupação com emissões ou escassez de recursos, mas o que ele descreve é uma economia de baixo carbono que cairia muito bem justamente agora.
É verdade que o crescimento econômico nos deu várias coisas, muitas delas positivas. Mas é claro também o que não nos deu, igualdade e felicidade, e o que nos tirou, um planeta saudável. Pessoalmente, a psicologia do crescimento nos hipnotiza e nos faz trazer a lógica da produtividade como bem maior para dentro de casa e para tudo o que somos.
Ainda que siga difícil identificar o que é o bastante, acho que está claro que dessa lógica já tivemos o suficiente.
Perdemos Quino mas sua filha Mafalda é imortal. E seguirá sendo um símbolo de indignação e da busca por uma sociedade melhor.