Clímax #30: Do que falamos quando falamos em consumo?
Olá,
Hoje eu voltei a pular as notícias. Passei dias escrevendo e reescrevendo o texto abaixo tentando encaixar tantas coisas que tem passado pela minha cabeça nos últimos meses com outros pensamentos ainda mais antigos, como peças de um quebra-cabeça.
Se fizer sentido para você, me escreva. É só responder o email, vou adorar conversar.
Na semana passada, li um texto que me deixou pensando por dias. The Worst Answer to Climate Anxiety: Wellness (A pior resposta para a ansiedade climática: o Bem-estar) escrito por Eleanor Cummins para a The New Republic.
Eleanor fala da cultura do bem-estar, essa ideia de um estilo de vida que alimenta e aprimora o corpo e a mente, que se mistura com a ideia do auto-cuidado. Ela coloca que o bem-estar que adotamos nos últimos anos é a combinação de duas religiões cívicas — valores da sociedade que não são propriamente religiosos — , o consumismo e a purificação, e que serve para nos permitir comprar satisfação espiritual sem que tenhamos que mudar nossos hábitos.
Cada vez mais consideramos tóxico o mundo ao nosso redor e acreditamos que precisamos nos purificar para conseguir continuar sobrevivendo a ele. O auto-cuidado começou como resistência, mas para muitos teria se transformado em uma desculpa para satisfazer todas as suas vontades em nome do bem-estar. Se as coisas estão ruins — e de fato estão — nos sentimos merecedores de um alento mesmo que seja individualista, o que nos faz acreditar que se algo nos faz sentir bem então só pode ser bom.
Isso se materializa em cuidados com o corpo, com o último equipamento perfeito para fazer atividades físicas sozinho em casa, cuidados com a pele como a moda das máscaras faciais para relaxar e todos os já polêmicos produtos empurrados pela Goop. E acabou se estendendo ao prazer individual em qualquer formato: comer algo gostoso, álcool, assistir a reality shows que — ironicamente — te façam esquecer a realidade, vibradores, cristais, velas, sais de banho…
São soluções pessoais para crises coletivas, e a crise climática é uma delas. Um dos exemplos dados é que ao vermos o ar de nossa cidade cada vez mais poluído compramos filtros de ar para a nossa casa, para os nossos pulmões, buscando empoderamento através do consumo. Ou a grande tendência das plantas em casa. Não temos mais acesso à natureza então criamos uma floresta particular, com plantas nativas de lugares distantes, algumas já em extinção no seu habitat. Emily acredita que isso nos afasta da busca por soluções coletivas, numa crença de que ao nos aprimorarmos teremos mais chances de continuar bem mesmo que o mundo que conhecemos acabe submergido.
OUCH!
A autora fala da comodificação do bem-estar, um debate que não é novo. Na nossa sociedade tudo vira produto. Nós mesmos perpetuamos essa ideia uns aos outros, é só você ser bom em algo, ter um interesse mais profundo ou prazer em fazer determinada coisa que inevitavelmente haverá quem te diga que você deveria pensar em como monetizá-la. Qualquer afinidade deve virar lucro.
Ela é um pouco dura, afinal estamos todos precisando de uma ajudinha para ficar bem. Mas acerta quando reflete que muitas vezes a busca pelo bem estar nos leva ao auto-isolamento — é quase irônico falar disso em tempos de isolamento forçado, eu sei — e que é perigoso deixarmos que a carga mental de se preocupar com a crise climática, por exemplo, nos leve a um aumento do consumo, que por sua vez exacerba o problema, numa espécie de feedback positivo.*
Embora o texto pare por aí, a meu ver, ele aponta para uma questão muito maior, sobre como a gente justifica o que é ou não um consumo válido. Eu acho que o problema central é que a gente fala muito sobre consumir menos, mas muito pouco sobre como consumir menos.
Pode parecer estranho e elitista querer falar do excesso de consumo no contexto de uma crise econômica tão grave que deixou tantas pessoas sem conseguir comprar o que comer. Mas é verdade também que, como o texto bem fala, as crises contemporâneas têm feito uma parte da população apelar — muitas vezes inconscientemente — a certos tipos de consumo para conseguir lidar com a realidade.
A diminuição do nosso consumo é absolutamente necessária para a sustentabilidade da vida no planeta. Qualquer estratégia para evitar que se chegue a uma realidade digna de ficção científica envolve zerarmos nossas emissões de gases de efeito estufa nas próximas décadas, e qualquer estratégia para atingirmos essa meta dependerá de uma diminuição do consumo mundial. Não há produto sustentável que nos salve desse destino. Mas do que falamos quando falamos em consumo?
Costumamos ter essa ideia errada de que consumir diz respeito apenas a certo produtos ou o que aponta o mercado. Vinculamos consumo a valores monetários: se não paguei, não consumi. Se foi caro, é um consumo excessivo. Porém o planeta não está nem aí pra custo-benefício. O conceito de consumo que nos interessa aqui é muito mais amplo, e está em tudo o que fazemos. Se algum elemento foi retirado do seu lugar natal ou teve o seu estado natural alterado temos aí uma forma de consumo.
É importante pensarmos nisso e admitirmos que o não-consumo não existe — afinal até respirar é consumir oxigênio e definitivamente não quero ninguém fazendo cortes nisso — porque só perdendo o medo de enxergar o nosso consumo como um todo é que poderemos mudá-lo e também garantir que o que nos é essencial possa continuar existindo.
Consumir menos depende do entendimento do que se pode cortar. A resposta imediata costuma ser que podemos cortar tudo o que é luxo, o que não adiciona, o que não desperta alegria.
Nossa sociedade tem uma visão formada do que é o excesso de consumo e, veja só, até aqui encontramos o machismo. A imagem do consumismo é a imagem de uma mulher. Associamos o consumo exagerado àquele de produtos que decidimos serem interesses apenas femininos: roupas, sapatos, bolsas, maquiagem. Melhor ainda se for algo caro e de marca, aí sim é consumismo pois se gastou muito dinheiro por pouco.
É então por esse viés que a maioria das pessoas consideram o seu próprio consumo e julgam o dos outros. É o que faz muitas pessoas olharem com cara feia para quem compra um casaco de dez mil reais enquanto acham normal comprar 20 bugigangas em uma (descanse em paz) loja de 1,99. E quando até mesmo um carro parece um consumo mais justificado porque isso sim é útil. Você já se deparou com essa narrativa por aí, não?
Focar no consumo de objetos e principalmente desses objetos específicos não ajuda em nada e de quebra ainda deixa um monte de homens achando que isso não é problema deles. Por isso, eu acho importante considerarmos tudo como consumo, inclusive as coisas mais básicas, pois para sabermos o que de fato é extra, precisamos primeiro saber o que é essencial.
Há algum tempo, eu perguntei por aqui o que é essencial e se a resposta tinha mudado com a pandemia. Vocês mostraram entender muito bem que essencial não é o que nos permite sobreviver, mas o que nos permite viver e vai muito além de apenas ar, alimento, água e abrigo.
É justamente no espaço entre a sobrevivência e o viver que mora o consumo mais difícil de se diminuir, pois é ali que encontramos a nossa identidade e o que dá significado à nossa existência. Porém, se não fizermos um esforço e olharmos para lá podemos facilmente cair na armadilha do merecimento ou na armadilha da culpa. Precisamos entender quais são os limites do que nos faz bem.
O auto-cuidado, ou o bem-estar, é um dos moradores desse espaço. Para nossa geração, isso nunca ficou tão claro quanto agora com tantas crises e desastres simultâneos, só com muita ajuda para a gente conseguir navegar os dias. Cada um com o seu remédio ou o seu veneno.
Mesmo aqueles que nossa sociedade segue vendo como símbolos de consumo — roupas, sapatos ou qualquer coisa vista como feminina — também podem pertencer à esse espaço para alguns. Por mais que haja quem insista em vê-los como produtos da vaidade, para muitos são necessários para impor respeito, autoridade, ou mesmo para justificar sua presença em lugares onde normalmente não são bem vindos.
É na diferença entre sobeviver e viver que também vive a arte. (E em breve teremos um Clímax só sobre isso).
Para muitos de nós as viagens cabem nesse espaço. Talvez por isso que, mesmo com a popularização nos últimos anos do debate sobre voar menos, raramente o vemos incluído na esfera da diminuição do consumo, onde deveria estar.
Pessoalmente, eu penso muito na questão do consumo não só por considerá-la essencial, mas principalmente porque eu sinto que é algo sobre o qual eu tenho um certo controle — ainda que não total — e eu gosto de ter controle. A minha relação com o meu consumo é um pouco obsessiva, o que de maneira alguma significa que eu tenha dominado a arte de consumir menos, tampouco tenho certeza se é uma relação saudável. Meu processo envolve muito questionamento e muito olhar pra dentro, mas também envolve medo e culpa, altas doses de culpa.
Eu tenho vivido pelo lema “és eternamente responsável por aquilo de consomes”. Principalmente quando se trata de bens materiais, eu me sinto assinando um termo de compromisso mais duradouro do que o do casamento. Se vou te trazer pra casa vou ter que fazer ser para sempre.
É daqui que vem a minha birra com a Marie Kondo, se vou comprar algo não posso admitir tomar essa decisão com uma vozinha na minha cabeça me dizendo que quando aquilo parar de me trazer alegria eu posso simplesmente descartar.
Por isso também há alguns anos fiz um pedido público para que não me presenteassem e anunciei que não mais esperassem presentes de mim, pois esses também não mais viriam. Eu não conseguia mais me sentir bem em jogar o fardo da responsabilidade daquele consumo para cima do presenteado. Então veio a quarentena e por vezes senti que tem horas que a presença só poderia ser substituída pelo presente. Vendo algumas pessoas queridas tão isoladas a vontade de fazer um agrado e tentar amenizar a solidão era tão grande que eu não achei outra solução. É uma forma de terceirização do auto-cuidado, promovendo o bem estar do outro e também me auto-cuidando através da sua alegria.
Essa não foi a única questão que a pandemia trouxe. Não consumir ou ajudar pequenos negócios que estão implorando por clientes? Não consumir ou comprar essas fotos que ajudam o projeto ou a comunidade X/Y/Z neste momento tão difícil? Que duro que é viver numa sociedade onde a vida de tanta gente parece depender do meu consumo. Adicione à tudo isso o fato de que agora consumir produtos físicos também significa colocar mais uma pessoa na rua com todos os riscos que isso implica, no mínimo para ir aos correios ou te entregar em casa.
É interessante porque por algum tempo ouvimos por aí que a pandemia seria o momento ideal para repensar o consumo. Me parece que na verdade nunca haverá um momento fácil para fazer isso, porém me parece também que ajudaria se fossemos mais honestos com a gente mesmo e com os outros.
Eu acho que já passou a hora de apenas dizer que o consumo precisa diminuir. Já não há mais tempo para recomendações vazias ou textos focando em como cortar apenas os descartáveis da sua vida, nem para aqueles que te dizem que o minimalismo é a solução sem realmente apontar a direção. Busco conversas sinceras sobre a dificuldade diária que é avaliar cada compra, cada atividade, sobre aceitar o que te é essencial e admitir o que na verdade é extra. Se um dos problemas do consumo é que ele nos isola e nos afasta das soluções coletivas não faz sentido lutar contra ele sozinha.
*Outra perspectiva importante sobre como (não) lidar com a ansiedade provocada pela crise climática: Ativismo também não pode ser visto como cura para a eco-ansiedade, de acordo com a psicoterapeuta especialista no assunto Caroline Hickman. Ela diz que precisamos entender que medo e desespero não são necessariamente ruins e construir tolerância à vergonha, culpa, ansiedade e depressão, encontrando um lugar para esses sentimentos na nossa vida.
Até a próxima!
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