Clímax #21: O que teremos para o jantar?
Olá,
Surpresa! Um Clímax de terça-feira. Mas afinal quem ainda conta os dias em tempos de quarentena?
Talvez você só leia isto amanhã, mas enquanto envio este email ainda é de fato terça-feira, é feriado e aniversário de Brasília, são 60 anos dessa capital que hoje me acolhe. Um pouco mais novo que a cidade é o aniversariante de amanhã, o Dia da Terra que por sua vez completa 50 anos, e em sua homenagem decidi que não poderia mais adiar o envio da newsletter. O Dia da Terra, ou Earth Day, começou nos Estados Unidos em 1970 quando levou 20 milhões (1/10 da população do país na época) às ruas em diversos eventos em defesa do meio ambiente. Ao longo dos anos o movimento se tornou global e neste ano se torna virtual. Vários eventos já estão acontecendo pela internet culminando no grande dia na quarta-feira e o tema deste ano é ação climática. O Instituto Limpa Brasil é responsável por alguns dos eventos brasileiros, você pode conferir a programação de lives e webinars no site e, se olhar com cuidado, achará meu nome ali, participando com o Climate Reality Brasil.
Já ontem foi segunda-feira, veja só, e a semana começou com o preço do barril de petróleo colapsando nos Estados Unidos, fechando no negativo com as empresas pagando para se livrar de seus estoques por não terem mais onde armazenar. Houve até quem sugerisse que ativistas ambientais comprassem barris para evitar que fossem usados ou mesmo que comprassem os poços de operadoras que estão falindo para prevenir a futura extração. Mas afinal, essa crise do petróleo poderá destruir a indústria e ter repercussões na crise climática? Ainda é difícil saber, é apenas mais uma das inúmeras incertezas do momento. Não importa o que aconteça, não será motivo de comemoração.
Mesmo essa notícia, além de tudo o mais que tem se passado, não tirou um assunto da minha cabeça. O que tem me atormentado nas últimas semanas são as imagens e relatos de toneladas de alimentos sendo enterrados, descartados, destruídos no meio dessa pandemia.
Eu sei que mesmo em tempos "normais" o desperdício de alimentos é enorme, já até falei sobre isso por aqui. Uma pesquisa de 2018 calculou que esse desperdício - seja durante a produção e logística, seja pelo consumidor - é responsável por quase um quarto das emissões de gases de efeito estufa da cadeia de produção de alimentos, o que equivale a 6% das emissões gerais do planeta. Mas colheitas inteiras voltando para o solo como adubo contém muitas tristezas em si. A tristeza de quem passou meses trabalhando na terra, investindo tempo, dinheiro e por vezes tudo o que tem, apenas para ver seus esforços irem embora de uma vez. A tristeza dos que passam fome sem acesso à comida fresca que apodrece sem nutrir ninguém - de acordo com o Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas o número de pessoas que enfrentam insegurança alimentar pode dobrar este ano por causa da pandemia. A tristeza do que isso significa para o planeta.
Montanhas de cebolas que nunca serão comidas. Foto: Joseph Haeberle para o The New York Times
Como pode sobrar tanto e faltar tanto ao mesmo tempo? No momento, o problema é a logística. Nossos hábitos alimentares mudaram, agora quase todos nós fazemos todas as refeições em casa, um conceito bem exótico para algumas pessoas. Com os restaurantes e cafeterias comunitárias (escolas, escritórios, etc) fechados, toda a demanda vem dos supermercados e seus semelhantes mas, embora a demanda não seja exatamente menor afinal o mesmo número de pessoas segue se alimentando ainda que de outra forma, ela é bem diferente. A primeira questão são as porções, se você vendia sacos de 5kg de queijo ralado para um restaurante, agora você precisa dar um jeito de embalá-los em sacos de poucas gramas, e muitas vezes você não tem nem a embalagem, nem as máquinas para enchê-las e nem o contato de supermercados para os quais vender o seu produto pois nunca antes vendeu para eles. A baixa durabilidade de folhas torna o seu escoamento em supermercados mais complicado. Os animais precisam ser desmembrados em frigoríficos onde funcionários trabalham lado a lado, criando um ambiente propício para a contaminação pelo coronavírus. As maiores processadoras de carne nos Estados Unidos tiveram que fechar depois de surtos do vírus entre seus funcionários, incluindo a JBS embora aqui no Brasil siga aberta após obter uma liminar na justiça catarinense.
Cada produto traz os seus próprios desafios.
Há ainda o fato de o que cozinhamos para nós mesmos não ser o mesmo que comeríamos em restaurantes. Aparentemente, no geral, as pessoas comem menos vegetais quando precisam prepará-los, além disso, para precisar ir menos às compras as pessoas têm dado preferência à alimentos não perecíveis e menos produtos frescos.
E aí você pode se perguntar, se os produtores não conseguem vender por que ao invés de jogar tudo fora não doam? Simplesmente porque eles não têm dinheiro para a distribuição. Diferente do nosso rico agronegócio das exportações de grãos – que aliás vai muito bem, obrigado, colhendo safras recordes - quem produz o que nós comemos de fato no Brasil são pequenos agricultores muitas vezes fortemente endividados, que vivem de safra em safra como quem vive de salário em salário, e se uma safra dá errado tudo pode ir por água abaixo.
Cabe então ao Estado agir. Uma forma é usar a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) que já foi autorizado a distribuir os alimentos adquiridos para as famílias dos estudantes matriculados nas escolas públicas de educação básica durante a pandemia. Assim podem articular a compra dos agricultores e levar a quem precisa.
A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) com apoio do Ministério da Agricultura, criou uma plataforma online para aproximar produtores, comerciantes e transportadores formando redes logísticas para que os produtos cheguem ao consumidor final. Para quem mora em São Paulo, a CNA criou também uma plataforma para conectar consumidores diretamente à produtores da região. Torço para que dê certo.
Quando o Estado não age outros tentam cumprir o seu papel. O Mutirão do Bem Viver arrecada dinheiro para, através de voluntários pelo país inteiro, comprar a produção de pequenos produtores da agroecologia e distribuí-la para pessoas vulneráveis nas periferias, na cidade e no campo, e se propõe ainda, a criar hortas e cozinhas comunitárias para que os frutos não sejam só momentâneos.
Criar soluções que perdurem e não sirvam apenas para amenizar os problemas criados pelo coronavírus é essencial. Essa crise deixou visível tantos problemas, e quando olhamos para o que está acontecendo no campo fica claro que nossa cadeia de produção alimentar tem muitas falhas, mas o que exatamente significaria consertá-las?
A pandemia trouxe à tona vários debates sobre o futuro do sistema alimentar global, principalmente no que diz respeito ao consumo de animais, selvagens ou não, já que o vírus é uma zoonose. Questiona-se também a eficácia da especialização e globalização do sistema em comparação com produções locais e diversificadas. Sem contar com o velho debate sobre métodos e tecnologias agrícolas.
Em um planeta com mais ameaças repentinas entre pandemias, desastres ecológicos e conflitos sociais vamos precisar de uma cadeia produtiva altamente adaptável. Como garantiremos a segurança alimentar de todos?
Leitura sobre o tema
Brasil:
Produtor rural destrói toneladas de alimentos no cinturão verde de São Paulo (Folha de São Paulo)
Fruta apodrece no pé com a queda da demanda no Nordeste (Folha de São Paulo)
Com escolas fechadas, 38 toneladas de alimentos quilombolas para merenda têm destino incerto (Instituo Socioambiental)
Coronavírus: Brasil não tem estoque de alimentos para enfrentar o desabastecimento (O Joio e o Trigo)
Coronavírus e agricultura: A realidade de quem coloca a comida no seu prato (O Joio e o Trigo)
BA: campanha incentiva consumo de leite para ajudar pequenos produtores (Canal Rural)
Em inglês:
Dumped Milk, Smashed Eggs, Plowed Vegetables: Food Waste of the Pandemic (NYT)
Food goes to waste amid coronavirus crisis (Politico)
U.S. Food Supply Chain Is Strained as Virus Spreads (NYT)
'A disastrous situation': mountains of food wasted as coronavirus scrambles supply chain (The Guardian)
Empty Grocery Shelves and Rotting, Wasted Vegetables: Two Sides of a Supply Chain Problem (Inside Climate News)
Food Shortages? Nope, Too Much Food In The Wrong Places (NPR)
Coronavirus Lockdowns Are Choking Africa's Food Supply (Time)
Coronavirus myth-busting: The truth about empty shelves and toilet paper shortages (Grist)
Coronavirus has more Americans turning directly to farms for food (Politico)
'If one of us gets sick, we all get sick': the food workers on the coronavirus front line (The Guardian)
Climão da Quarentena
Recuperação Verde Ministros do meio-ambiente e do clima de 17 dos 27 países da União Européia já apoiam chamado para que o Green Deal europeu esteja no centro das políticas de recuperação pós pandemia.
Existe base cientifica que justifique Um artigo publicado na revista Nature Communications diz que todos os países se beneficiariam economicamente se aumentassem as ambições de seus compromissos nacionais dentro do Acordo de Paris. De acordo com os pesquisadores chineses, a economia mundial pode perder 800 trilhões de dólares até 2100 se não houver esforços para sequer cumprir seus compromissos atuais que manteriam o aumento da temperatura abaixo de 3C.
O isolamento não está sendo bom para todos os animais Nas últimas semanas a internet foi inundada de histórias, fotos e vídeos de animais selvagens passeando por cidades vazias ou reaparecendo em seus habitats naturais agora mais limpos devido à ausência humana. Vários foram desmentidos mas muitos realmente são verdade e talvez você mesmo tenha notado mais pássaros na sua janela ultimamente. Além disso, nos EUA, a adoção de cães aumentou significativamente desde o começo do isolamento, com alguns lugares precisando de filas de espera pois faltam animais. Pessoas que ficam em casa querem companhia. Mas a ideia de que as medidas tomadas para controlar o coronavírus foram benéficas para todos os animais não é correta. Muitos dos animais que “invadiram” cidades buscavam comida por estarem acostumados a serem alimentados por humanos e não conseguirem se mais se virar sozinhos. Na maior parte do mundo, os esforços para conservação da fauna dependem do turismo e com o fechamento das fronteiras e o confinamento das pessoas em suas casas esses esforços correm sérios perigos. Na África os efeitos já estão sendo notados, com um aumento da caça furtiva - principalmente de rinocerontes pelo seu chifre - mesmo em áreas turísticas onde isso não costumava acontecer. Não apenas a presença dos turistas afastava os caçadores mas também o seu dinheiro, responsável pelo custeio de parques nacionais e reservas privadas.
E os cientistas trazem mais más notícias para os animais… Um artigo publicado na revista Nature prevê que o colapso da fauna do planeta pode chegar muito antes do previsto por causa das mudanças climáticas, e que poderá vir de forma abrupta e em efeito cascata, ao invés de lentamente como se imaginava. Esses efeitos podem começar já na próxima década se nada for feito.
Menos voos, mais pesquisas Com menos aviões no céu devido às medidas de isolamento para controlar o coronavírus, não temos apenas menos emissões mas também uma chance de melhor entender o impacto dos voos no clima. É um ótimo momento para se estudar os rastros de condensação (contrail) deixados pelas aeronaves e que contribuem para o aquecimento do planeta mas ninguém sabe muito bem quão severamente.
Para passar o tempo em casa
O New York Times fez uma ótima lista de livros sobre a crise climática. De romance a distopia, passando por livro infantil e de não ficção sobre variados temas, tem dica para todos os gostos e vários títulos podem ser encontrados já com traduções para o português.
Para quem quer um livro brasileiro sobre o assunto, temos o A Espiral da Morte do jornalista Claudio Angelo.
Como vocês podem ver eu continuo meio desorientada nessa era do isolamento, mas prometo não deixar vocês sem notícias climáticas por muito tempo.
Se sentirem falta do Clímax e quiserem conversar, me escrevam.
Aproveitem e leiam todas as edições passadas, os assuntos nunca ficam velhos.
Nos vemos em breve.
Fique em casa.