Clímax #19: O que devemos uns aos outros?
Olá,
Chegamos a nossa terceira semana falando de coronavírus. Como vocês estão?
Eu tenho me sentido sobrecarregada. De informação, de noticias, de mudanças. Sem contar com o isolamento que, embora não tenha transformado muito a minha rotina que já era mais contida, faz diferença não só individualmente mas na atmosfera geral.
Esta pandemia está afetando todos os aspectos da nossa sociedade, exacerbando os problemas e as desigualdades, criando um efeito dominó. Não é possível tratar isso de forma leve. Os efeitos nas nossas rotinas, no nosso direito de ir e vir, não são nada se comparado ao impacto na economia com setores inteiros parados, nos empregos que desaparecem a cada segundo, no sistema de saúde sobrecarregado. Muito menos se pensarmos naqueles que não podem parar de trabalhar, nos que ficaram sem renda, naqueles que não tem água em casa ou sequer tem casa para se abrigar.
Para quem está acostumado a pensar a crise climática a compreensão de sistemas complexos que levam à efeitos em cascata não é nova, mas para muita gente é a primeira vez se deparando com a ideia de que tudo está interligado e que é preciso se considerar o impacto de nossas escolhas individuais no coletivo.
Por mais que ainda tenhamos pessoas na rua, vivendo suas vidas como se nada estivesse acontecendo, é preciso reconhecer que houve uma mudança no pensamento geral e que ela veio até bem rápido. Quando a pandemia começou a aparecer foi difícil para todos nós aceitar a sua presença e suas possíveis consequências. Acredito que todo mundo passou por um momento em que se perguntou “O que isso tem a ver comigo?” Mas conseguimos estabelecer coletivamente que essa pergunta não importa. Se esse novo jeito de pensar vai durar eu não sei, mas hoje existe uma consciência mais ampla de que a vida em sociedade implica em o coletivo se sobressair ao individual. É a reconstrução da narrativa de que nós devemos algo uns aos outros e esse é um reconhecimento muito importante.
Será que ele pode nos levar à novos rumos?
Em meio a esse caos todo, muita gente tem tentado focar na oportunidade que a crise traz para a criação de um novo futuro, pois se muito terá que ser reconstruído depois que a pandemia passar então por que não construir algo novo?
A economia precisará ser estimulada para voltar a crescer, poderemos então usar esse estimulo para criar uma economia mais verde? Poderíamos usar a cartilha do Green New Deal - que afinal foi baseado no New Deal de Roosevelt, criado justamente para recuperar os EUA de uma recessão - e incentivar as indústrias de energia renovável e de tecnologia verde como de baterias ou carros elétricos, investir em infraestrutura de baixo carbono e em eficiência energética. Se teremos que fazer pacotes para salvar indústrias como a de transporte aéreo, por exemplo, podemos estabelecer como condição que tomem medidas para cortar suas emissões em um futuro próximo. Também poderíamos aproveitar a situação e reformular a ideia da necessidade de um crescimento eterno.
Fatih Birol, diretor da Agência Internacional de Energia.
Na Coréia do Sul, país que sofreu bastante com o vírus e que agora está sendo celebrado e usado de exemplo pela sua forma de controlá-lo, o partido atualmente no poder lançou nesta semana um manifesto a favor de um Green New Deal para o país e de um compromisso de alcançar zero emissões até 2050. Não é medida tomada, é apenas uma proposta que deve encontrar boa aceitação pela população ou pelo menos entre os jovens, tendo em vista que poucos dias antes 30 adolescentes entraram na justiça contra o governo alegado que seus direitos fundamentais estão sendo infringidos pela atual lei de mudanças climáticas do país.
Mas ações nacionais não são o bastante, voltamos então a ideia do coletivo se sobrepondo ao individual, agora em escala global. Um país sozinho não resolve nem crise climática nem pandemia, o que mais precisamos nesse momento é cooperação e é esse também o nosso maior desafio. Passamos por uma crise de confiança no outro, seja ele uma pessoa ou um país, o que fica claro quando vemos nesse momento de sofrimento universal países atacando uns aos outros como os EUA culpando a China e a China culpando os EUA (e o Brasil achando que pode se meter). Vivemos também uma crise de confiança na ciência, na mídia, nos nossos governantes, para alguns até mesmo na própria democracia. Um dos efeitos desse vírus pode ser resgatar a nossa confiança uns nos outros porque talvez não tenhamos mesmo outra escolha.
António Guterres, Secretário Geral das Nações Unidas
Yuval Noah Harari, historiador, filósofo e autor de Sapiens e Homo Deus.
À fala do Harari podemos acrescentar a crise climática como beneficiário desse possível resgate da confiança e do aumento da cooperação global. E vejo também outros aspectos da crise atual que podem contribuir para a discussão climática.
O novo coronavírus está nos provando o quanto a nossa sociedade depende do consumo para funcionar, bastou um par de semanas sem consumo para que inúmeros negócios quebrassem, empregos se perdessem (nos EUA se prevê que em 1 a cada 4 famílias alguém tenha perdido o trabalho) e indústrias inteiras pedissem por ajuda. Não é nem que paramos de consumir, continuamos consumindo o que é preciso para a sobrevivência, paramos apenas o consumo não essencial.
Eu vejo aí duas lições para a crise climática. A primeira é sobre o velho debate da culpabilização do indivíduo. O peso de um indivíduo mudando seus hábitos e consumindo menos ou consumindo de forma consciente não faz diferença no clima, já o peso de muitos indivíduos fazendo isso ao mesmo tempo faz as emissões baixarem, as águas de Veneza voltarem a ser limpas, a fauna voltar para certos ecossistemas… mas também destrói a economia. Não existe solução para o clima que não envolva uma reestruturação da economia e da sociedade. A narrativa da culpa individual que diz que se todo mundo mudar o seu estilo de vida podemos salvar o planeta nunca pareceu tão boba. É claro que isso será, sim, necessário e pode ser ajudado pela nossa experiência com o vírus que nos fez aceitar sacrifícios pessoais em nome do coletivo, mas jamais será o suficiente sem uma mudança no sistema.
A segunda lição é sobre a necessidade de agir já. Está muito claro que não é possível esperarmos que a emergência aconteça para agirmos pois mudanças bruscas trazem fortes consequências. Precisamos de medidas gradativas que deveriam ter começado há muitos anos e para as quais temos cada vez menos tempo. Não dá mais para esperar.
É claro que não há nenhuma grande novidade aqui, pelo menos não para quem já estava prestando atenção, mas a pandemia expandiu esse grupo de atentos, fez todo mundo ver. Resta saber se nossa memória é curta.
Esses são apenas alguns dos inúmeros pensamentos girando pela minha cabeça ultimamente, os que se relacionaram com crise climática e que consegui articular com um pouco de clareza. Eu não sei se vocês notaram mas semana passada foi muito difícil para mim escrever. Hoje eu até tinha pensado em brincar e dizer que na semana passada eu morri mas nesta semana eu não morro e acabou que eu não estou me sentindo tão mais viva assim. Tem sido muito difícil para mim articular qualquer ideia com tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo, e nesse mar de informações fico na dúvida se o que tenho a dizer é válido nesse momento.
Sinto que preciso pausar o meu consumo de notícias de tempos em tempos, o que se torna muito difícil enquanto escrevo a newsletter pois sinto que preciso estar atualizada sobre tudo o que se passa. Por isso, a princípio, o Clímax passará de uma newsletter semanal a quinzenal até que possamos nos acostumar com a nova realidade. Espero que entendam.
Hoje o Clímax veio nesse formato carta para dar uma personalizada na conversa neste momento de restrições sociais. Precisamos socializar! Mais do que nunca quero deixar claro que meu inbox está aberto, sempre que quiser conversar é só responder os emails do Clímax, sua mensagem chegará diretamente a mim e poderemos seguir o papo.
Fiquem bem e cuidem uns dos outros.
Com carinho,
Bibiana