Olá,
Eu planejava enviar outra newsletter esta semana sobre um assunto que eu sempre falo por aí mas nunca escrevo a respeito e com participação de uma comunicadora bacana. Mas algumas conversas nas últimas semana me fizeram sentir que eu precisava dividir algumas coisas com vocês, então hoje eu quero falar das minhas contradições, sobre eu não ter resposta pra nada e sobre o que mais me assusta nisso tudo.
Não tem notícias, não tem (muitos) links, não tem dados, mas eu estou achando que não é isso que você precisa hoje.
Mais do que nunca eu gostaria de ouvir de vocês. Não esqueçam que vocês podem sempre responder os email da Clímax diretamente ou então deixar um comentário na página desta edição para que todos tenham acesso.
Não tenho conforto a oferecer, mas talvez meu desconforto te sirva
No começo do mês foi divulgada a primeira parte do Sexto Relatório do IPCC (O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, entidade parte da ONU), descrevendo o estado do clima. O cenário de futuro pintado não é bonito. Aliás, nem o do passado, pois demonstra todos os erros que já cometemos e insistimos em continuar cometendo. Não há nada de novo por ser uma análise de mais 14 mil estudos anteriormente publicados, mas é um grande sumário que reforça consensos e é importantíssimo para a divulgação dos dados. Importância que ficou visível na quantidade de matérias na mídia sobre o assunto (talvez nem tanto aqui no Brasil, a Folha até teve que fazer um mea culpa), e na quantidade de pessoas deprimidas após as lerem.
Essa primeira parte do relatório, produzida pelo grupo de trabalho I, é a mais “de exatas” das três, focada na ciência física do clima e cheia de números e tabelas que nos mostram todas as mudanças que já causamos, porém, sem contexto social. As próximas publicações, que serão divulgadas no ano que vem, tratam de impactos e vulnerabilidades, e mitigação ou soluções, e são mais interdisciplinares. Eu destaco isso porque é importante a gente entender que as informações que recebemos desse relatório até então são importantíssimas mas deixam de fora o componente mais assustador da equação: nós mesmos.
No dia da divulgação do relatório, eu escrevi no Instagram da Clímax sobre o quanto me surpreendeu a preocupação do impacto do relatório na nossa saúde mental – diversos artigos e tweets publicados com sugestões sobre como não se deprimir, como transformar ansiedade em ação, etc. -, visto que nas semanas anteriores havíamos acompanhado a realidade da crise climática em catástrofes nos quatro cantos do mundo, uma verdadeira amostra de tudo o que o relatório dizia. Imagens que valem mais do que mil dados.
Talvez eu estivesse errada, pois justamente a sobreposição das imagens e relatos desses eventos com os dados que comprovam que sim, as imagens são reais, estão correlacionadas e não vão desaparecer, é a fórmula perfeita para o desespero. Principalmente para que está fazendo essa conexão da emoção com o racional pela primeira vez. Mais ainda no contexto de uma pandemia que exacerba todo sentimento negativo ao nos impedir de estar junto.
Nos dias que seguiram, algumas pessoas me procuraram para falar sobre como estavam se sentindo, para pedir ajuda e dicas de como lidar com as informações e como encontrar faróis de esperança. Tive ótimas conversas, e acho que o que ajuda é o ato da conversa em si, e não o seu conteúdo. Mas fiquei pensando que eu devo passar uma imagem de alguém que consegue controlar seus medos e ansiedades mesmo estando tão envolvida com o tema. Isso está longe de ser verdade.
Eu talvez já não seja mais supreendida com novos dados, projeções de temperatura, listas de desastres e gráficos que nos dizem o quanto elas vão aumentar em frequência. Também já me entristece menos o fato de que tudo isso é nossa responsabilidade, e que muitos sabiam disso há muito tempo e escolheram não fazer nada, ou, ainda pior, escolheram fazer muito para esconder, enganar e manipular opiniões. Mas algo que me desespera é pensar em como trataremos uns aos outros. Para mim essa é a grande variável da crise climática.
Como tratamos uns aos outros é a cura mas também o veneno. Pode ser o tipping point mais perigoso ou o começo da transição mais bonita que já vimos. O problema é que já não estamos nos tratando muito bem.
Me apavora todo novo indício de que crise climática já esteja sendo usada como motivação para fechar fronteiras, erguer muros, para a violência, para a promoção de táticas de controle populacional. Me entristece que cresça o desejo por bunkers e por fugas espaciais. Mas mais do que o que a crise climática motiva, me assusta o que a nossa crise de confiança tem proporcionado e aí não é preciso nem buscar notícias sobre o clima para ser surpreendida por novos exemplos.
Abusos que permitimos no passado criaram um ambiente de desconfiança, e em um ambiente de desconfiança não há pacto social. Sem pacto social não sabemos sequer se o carro que está vindo na rua não vai decidir subir na calçada e passar por cima de nós. Nós precisamos de confiança para viver em sociedade. Precisamos acreditar que alguém é responsável pela verificação e manutenção da ponte para que possamos usá-la sem medo que ela caia. Precisamos acreditar que vacinas foram criadas com atenção e cuidado, testadas e aprovadas por alguém que sabe o que está fazendo e não apenas para o lucro de poucos.
Embora eu ainda não conheça ninguém que procure as informações técnicas de uma ponte ou a data da última manutenção antes de dirigir sobre ela, já vemos movimentos robustos e por vezes até violentos contra vacinas. São exemplos como esse – e temos tantos outros – que me apavoram. Se não conseguimos concordar com uma vacina, parte simples da solução de um problema complexo, como teremos qualquer consenso sobre como lidar com a crise climática? Se há quem ache que exigir vacinas é um tipo de opressão, o que não será considerado autoritário?
Esse fetichismo da discordância e da suspeita sempre me leva de volta para o tema do clima e me causa muito incômodo, ansiedade, tristeza, desespero.
Tem dias que eu tenho um impulso totalmente irracional de desligar todas as luzes da casa porque me dá um pânico repentino ao pensar em onde chegamos por causa do nosso medo do escuro. Eu nunca me imagino vivendo um evento climático extremo, morrendo de desidratação em uma onda de calor ou perdendo a minha casa para o aumento do nível do mar. Eu claramente sofro desse condicionamento psicológico que nos leva acreditar que nada vai nos atingir diretamente. É uma ilusão. Porém, eu sofro o sofrimento alheio e me imagino vivendo uma vida inteira com essas dores, sem conseguir lidar com as injustiças do mundo e ajudando a criar novas gerações que também não saberão como aceitar a possibilidade de felicidade quando tantos outros sofrem. É insuportável a ideia de que isso nunca vai passar.
Há quem critique a ecoansiedade por considerá-la um problema elitista, algo que só sente quem tem o privilégio de não estar na linha de frente da crise climática e de nunca ter sentido na pele os seus impactos. Eu com certeza me encaixo nessa descrição. E em boa parte do tempo eu estou me sentindo culpada por algo que fiz ou deixei de fazer, o que também é uma crise clássica dos privilegiados.
Eu sinto que todas as minhas ações para supostamente colaborar com a solução da crise são meio ao acaso por elas não serem suficientemente desconfortáveis. Eu tenho o privilégio de não precisar ter carro e nunca nem ter tirado carteira de motorista porque eu sempre tive condições de morar perto do trabalho ou escolher um bairro com bom transporte público e também nunca dependi de um emprego que me exigisse dirigir. Eu consumo menos de certos símbolos do consumismo pois posso passar anos sem comprar roupas e usar peças de dez anos atrás porque de mim não é exigido um cuidado extra com o meu visual para ser respeitada por causa da minha cor de pele, por exemplo. Também não preciso me ater a padrões de feminilidade que exigem de tantas mulheres maquiagem, cabelo arrumado e unha feita – mas sem exageros e personalidade demais, por favor – para serem levadas a sério em suas carreiras e ocuparem lugares de poder. Eu posso parar de comer carne em parte porque não dependo do que é oferecido na cantina do trabalho, porque o dinheiro me permite escolhas e tempo para preparar meu próprio alimento. Se faço algo que considero correto, foi sorte.
Talvez eu ache que eu precise fazer verdadeiros sacrifícios ou então de nada vale. Mesmo assim não os faço. Não sou exemplo a ser seguido e jamais conseguiria ser. Você pode parar de tentar seguir meu perfil pessoal no Instagram pois só posto fotos do meu dia a dia e não trago dicas de como diminuir a sua pegada ambiental. Você também não precisa me pedir desculpas por não saber reciclar. Até porque, eu só cobro padrões tão altos a mim mesma – e a bilionários também, é claro –, é tipo uma síndrome da impostora sustentável.
Tudo isso contribui para me deixar ainda mais pessimista, porque quando a gente personaliza a culpa, a ansiedade é ainda mais intensa. Racionalmente, e em conversas com outros, eu sei que a auto-culpabilização não leva a muita coisa, que a individualização do problema e das soluções também é super complicada e ferramenta usada pelas indústrias fósseis, e que todo mundo que já viveu pelo menos nos últimos mil anos teve que lidar com uma sociedade injusta e com o sofrimento alheio. Mas aí essa contradição entre o que eu penso e o que eu sinto também se torna um novo elemento a causar mais ansiedade. Se eu penso que a solução não é individual, é coletiva, eu entro na espiral de me perguntar que raios eu estou fazendo pelo coletivo já que toda vez que tento me juntar a grupos de pessoas minha introversão fala mais alto e eu fico muda em um cantinho e saio do local sem ter realizado nada ou sequer dividido o meu nome com alguém.
Às vezes eu penso em parar de escrever a Clímax. Talvez se eu não escrevesse eu conseguisse parar de pensar e ler sobre o assunto sem qualquer descanso. Então eu lembro que escrever é o único momento em que consigo me sentir um pouco mais no controle e que é como consigo me conectar com outros e trocar ideias e dores. Me pergunto se não é essa a forma que encontrei para começar a enfrentar meus desafios com a coletividade.
Todo manual de comunicação e mobilização sobre o clima fala na necessidade do equilíbrio entre o problema e as soluções. Dizem que é preciso que a gente fale das duas coisas, que não exagere para um lado para não criar desespero que leve a conclusão de que nada pode ser feito, nem otimismo que nos faça pensar que nada precisa ser feito. É como se houvesse a ideia de que se a gente conseguir achar a proporção correta, se dermos o discurso perfeito aí sim a humanidade vai finalmente acordar e vamos resolver todo o problema. Eu acho que eu mesma já acreditei nisso, mas mesmo essas regras eu não consigo mais seguir. Outra falha. Não consigo nem pensar em falar de soluções, pois a verdade é que não acredito nelas.
Calma lá, não acreditar em solução não quer dizer que eu ache que estamos perdidos, que não há o que fazer. Eu tenho plena certeza de que precisamos parar de queimar combustíveis fósseis, por exemplo. Mas eu também sei que todos as outras formas de produção de energia também têm seus problemas e que a gente não tem como simplesmente não produzir mais energia.
Embora eu não tenha respostas, eu talvez tenha um dom de fazer perguntas e me indagar que novos problemas são esses que surgem com as soluções, pois a verdade é que toda solução cria algum novo problema – a própria queima de combustível fósseis solucionou um problema um dia – mas se pudermos antecipar esses problemas talvez possamos diminuí-los. Ou alguém pode, claramente não serei eu a descobrir como.
Eu nunca vou entender o suficiente de economia para saber em detalhes como a gente vai sair do nosso esquema de produção sem limites atual e diminuir a desigualdade mundial. Eu também nunca vou saber o suficiente de engenharia para criar a bateria ideal que não dependa de tanta mineração, e muito menos vou conseguir entender planos para extração de minérios que explore menos as pessoas e o meio ambiente. Nem mesmo de comunicação eu entenderei o bastante para criar a tal fórmula perfeita que vai conscientizar todos sobre a crise climática e mudar o mundo. Mas tudo bem, é por isso que tem tanta gente no planeta, é por isso que a gente fala em coletivo, porque ninguém faz nada sozinho, só que isso depende de confiarmos uns nos outros.
I want you to panic.
“Eu quero que você entre em pânico”, disse Greta Thunberg no seu discurso mais famoso. E talvez eu queira também. Embora por vezes o pânico cause divisão, talvez este pânico seja o que nos leve a buscar ajuda no outro, talvez a tristeza nos aproxime, afinal, ela só alivia de verdade se estamos juntos. Talvez só assim a gente finalmente entenda o quanto precisamos uns dos outros.
Eu tenho um medo tremendo e eu acho que muita, muita coisa vai dar errada e muita gente vai sofrer. Mas eu também acho que muita coisa vai dar certo, que muito sofrimento é evitável e que pelo menos um pouco será evitado. As coisas vão piorar, para mim é fato, mas não tanto quanto poderia e a gente precisa fazer tudo o que puder para que seja ainda menos do que parece provável agora. Eu já não penso mais em termos de aumento de 1,5 ou 2 graus, nem quero saber quão perto estamos de um tipping point, porque a verdade é que isso nos distrai. Não importa quão quente ficou ou quais tipping points atingimos, sempre será possível evitar algum sofrimento. Pode não haver cura, mas há como diminuir a dor, e eu não tenho dúvidas de que menos dor sempre vale a pena.
“No fim das contas, nós não estamos tentando parar os furacões, nós sequer estamos tentando parar a queda na produção de alimentos. O que nós estamos tentando parar é o sofrimento. “ Olúfẹmi O. Táíwò
Eu sempre uso essa citação nos cursos que dou. O sofrimento é a verdadeira métrica.
Tendemos a achar horrível a frase “sempre pode ser pior”, mas olhando com outros olhos ela também pode ser um conforto, ou pelo menos um convite a ação. Por mais que a gente tente se enganar, sofrimento generalizado sempre existiu no planeta, há sempre um apocalipse acontecendo para alguém. E de forma mais individualizada, sofrimento também sempre foi e sempre será parte de se estar vivo. Mas eu também acredito que o nosso papel como seres vivos, humanos ou não, o papel da vida em si é nutrir a vida, nutrir outras vidas. E essa nutrição, esse alimento que damos e recebemos uns dos outros – seja o cuidado, a escuta, o amor, seja a fotossíntese que as plantas fazem e nos fornecem alimento e oxigênio, seja a polinização ou mais literalmente nossos corpos virando adubo – é a antítese do sofrimento.
Nós estamos aqui, nós estamos vivos com quase oito bilhões de outras pessoas. Todos nós iremos sofrer, inclusive esse sofrimento que você está sentido hoje, a ansiedade, o medo do futuro, o pânico ao ler o relatório do IPCC. Mas nós ainda temos uns aos aos outros, cada um de nós ainda pode escolher nutrir uma pessoa que seja, viver esse luto juntos, aliviar.
Enquanto for possível nutrir, ainda teremos uma chance.
Não sou eu que vou desistir, você vai?
Também me desespero em pensar em como trataremos uns aos outros. Acho que essa é a grande reflexão que temos que encontrar uma forma de fazer coletivamente. Parabéns, Bibiana. Me identifiquei muito com o seu texto!